segunda-feira, 29 de setembro de 2014

SUMIÇO

Nós nem sentimos.
Foi assim abrupto e pronto.
Quando o pulso gama de um Quasar nos acertou, nós nem percebemos. Ou antes sim. Nosso avançadíssimo sistema de satélites percebera, alguns segundos antes: o sinal. Ninguém no mundo o soube. Eu sim. Eu o vi na tela pipocar e antes de entender a variação eu já não existia, tinha sumido junto ao planeta Terra. 

Você ainda sabe o que é isso?

Então deixe-me explicar o que foi a Terra: um pedaço minúsculo de rocha em que apenas alguns trilhões de seres orgânicos ainda respiravam.

Mas Deus fora bondoso conosco. Não foi uma extinção em massa como no caso dos Dinossauros, não, não: o iminente meteoro B-612, que estava em rota de possível colisão com a Terra, passou somente a alguns milhões de quilômetros ao nosso lado. Se ainda tivéssemos água em nosso planeta os maremotos teriam inundado apenas centenas de quilômetros de área costeira: um erro de mira tão pequeno!

Mas quem não errou foi o Quasar. Nós sumimos.

Quando, do violento entrechoque de poeira, gelo e gás, que ao girar em altíssima velocidade na borda da enorme singularidade que centra e organiza a existência de nossa galáxia, o monstro enorme que tudo devora, Caríbdis infinito, massivo, negro e faminto, vomita o excesso acelerado dos restos de milhões de estrelas que se somem e se movem de em dentro, na queda cíclica e eterna, desmoronando, monstro quengole tudo: a si mesmo: o nada negro onde tudo se cabe-se, nós sumimos, o-pra-sempre.

Eu o vi na tela pipocar e antes de entender a variação eu já não existia.

Entender ≠ Existir.  

Não houve explosão cataclísmica, nem dor, nem fome, nem frio! O Céu não escurecera ante bilhões de quilos de pó e sangue, ao contrário: nós brilhamos infinitos como uma estrela moribunda: supernova!!

Suprema desvinculação.

Quando o nosso satélite percebeu, já era tarde. Essa é a imensa e bela ironia das ondas eletromagnéticas: você só as vê quando elas chegam em você. 

A luz o atingiu, ele mandou o sinal e explodiu, o sinal pipoca na tela e eu não estou. 
Nada está.

Nós não fomos extintos, nós fomos aniquilados: desaparecemos: suprema bondade de Deus. 

Quando a onda eletromagnética nos atingiu o oxigênio instantaneamente comburiu-se. Alguns milésimos de segundos depois todos os comburentes atmosféricos explodiram. Isso foi cerca de três segundos antes de toda a água no planeta ferver.

Embora e fervura não tenha nenhuma relação direta com o ar e o Céu e o fogo, mas nós sim.
Nós sumimos. Fomos felizardos. E a raça humana, nós, mostramos nosso lugar no mais alto palco evolutivo.

Quando o oxigênio incendiou-se, todos aqueles que vivem rodeados por ele se foram juntos: não houve tempo nem para o mais ínfimo pensamento desconstruído: nós sumimos. Assim. Ponto 
Mas todas as nossas mais fortes construções: bunkers; muralhas; fortificações: resistiram.

Ficaram de pé heroicamente, até a explosão do hidrogênio, uma força tão exemplar, igualável apenas por algumas vezes a força de todas as bombas atômicas juntas – mas resistiram, de pé, heroicas: os monumentos finais da grandiosidade da espécie humana –.

Os únicos que sofreram foram os peixes e os demais seres marinhos. Eles sentiram uma dor trucidante por infinitos dois segundos antes de morrerem. Mas não sumiram como nós, seus corpos ficaram lá, boiando como prova de que viveram até que a explosão do nitrogênio desintegrasse toda a água.

As baleias cantaram em uníssono uma canção última e fúnebre. E por fim, compreendemos em palavra o real significado do sofrimento. 

A palavra: solução; final.

A palavra mais buscada por todos os poetas, a palavra certa e derradeira, o sentido completo, sem subterfúgios ou dicionários: o fim em si mesmo, a dor em si.

Mas não estávamos mais aqui para apreciar ou entender tal palavra. Sumimos.

Nós, não a Terra. Esse pedaço de rocha inútil e sem vida.

Sumimos.

Mas estamos aqui, caminhando por esta nova Terra – ou quiçá a mesma – estes protozoários novos, remanescentes da mesma e triste consciência radioativa. 

Esse pedaço vago e seco de rocha continua, no entanto, existindo, até que o nosso Sol, essa estrela fria e pequena que nos alimenta, decida nos pulverizar. 

E mais tarde, quando Andrômeda e a Via Láctea decidirem sua dança de acasalamento, interdevorando-se: imensos braços que se destroem, se desintegram; quando suas singularidades procurar-se-ão (dois amantes-distantes a se buscarem sempre-sempre), nesse novo pulsar de força imensa, e Júpiter com suas infindáveis tempestades cair pra dentro do centro radioativo da novíssima galáxia e Saturno for, irremediavelmente lançado para longe no vazio escuro e sem luz do Cosmo, onde não há nada: tempo 0! 

Nem mesmo isso sobrará, nem Sol, nem sistema, um nada, um vazio, e ainda assim, teríamos caminhado por sobre a Terra. Nossa sombra destroçada e perdida, calcinada, já se terá ido.

Mas isso levará tempo. Até lá, já teremos sumido.