Acabei de assistir ao Batman
versus Superman:
A origem da Justiça – Versão Extendida (doravante, BvS)
com meus filhos. Já havia gostado da versão cinematográfica,
malgrado os seus buracos narrativos (que nunca comprometiam a
verossimilhança), mas a versão mais longa é excelente – o que me
leva a questionar: por que a produção não permitiu que a visão do
diretor seja a exibida? Se deixou passar o roteiro, deixasse passar a
edição.
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1.
A estrutura fragmentária das cenas
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Com
o Bluray, ficou mais fácil perceber um dos problemas do filme,
talvez o mais essencial, que está na direção. Snyder (Zack, o
diretor) é um excepcional fotógrafo e excelente coreógrafo. Suas
cenas são lindas. No entanto, faz parte de um grupo de diretores que
alguns convencionam chamar de “Oners”,
isto é, suas cenas têm extensão média de um minuto. Algumas, como
a discussão entre Perry White (Laurence Fishburne) e Clark Kent
(Henry Cavill) sobre a obrigação ideológica de um jornal impresso,
cena extremamente importante para caracterização da personagem
Superman (também Cavill), não deve ter durado nem 20 segundos.
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Logo,
um filme de 180 minutos deveria, em tese, conter 180 cenas. Um
absurdo. Na verdade, as 3 principais lutas da película que são,
praticamente, consecutivas, levam em torno de 40 minutos.
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A
lógica, para diminuir 30min de filme e manter por completo os
combates que garantem público, é cortar 30 cenas. Todas de
caracterização de personagem. As mudanças são gritantes, pois
muda o sentido da narrativa. Uma personagem que vimos no cinema
aparecer apenas de relance na televisão tem, pelo menos, 6 cenas, o
que modifica completamente a nossa compreensão do envolvimento na
trama de Lex Luthor (Jesse Eisenberg) e da Senadora Democrata June
Finch do Kentucky, vivida por Holly Hunter (este dado, sozinho,
possibilitaria um artigo em si).
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Como
a direção é fragmentária, mais, digamos, cinematográfica, no
sentido de ser construída na sala de edição, ela se desmancha,
fica incompleta, na hora em que se eliminam as peças do
quebra-cabeças – interessante notar que o filme anterior do
Superman com Henry Cavill, dirigido por Zack Snyder, O
homem de aço,
beneficiou-se
dos cortes, ficou mais enxuto e a narrativa limpa quando foi editado
para ser passado na televisão aberta brasileira, talvez o problema
do diretor/roteirista seja justamente o excesso de gordura no texto
de que é autor e que falta nos seus atores –. Este tipo de
disposição de diálogos que são múltiplos e com múltiplas
personagens, dá a sensação de passagem de tempo, um verdadeiro
mosaico de sumários – se podemos assim chamar, haja vista que, na
teoria da narrativa, o sumário opõe-se à cena, isto é, o primeiro
é a exposição feita pelo narrador em discurso indireto e o segundo
é a expressão das personagens entre si através de diálogos em
discurso direto –, que se acumulam e só, ao final, temos a
sensação de personagem existente, que possui natureza, ou no dizer
de Forster, cuja nomenclatura é adorada nas aulas de roteiros
cinematográficos: transforma-se em personagem redonda.
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Ao
contrário, uma direção, se poderíamos chamar assim, dramatizada,
isto é, ao nosso ver, feita através de cenas bem mais longas, em
que as personagens sentem e conversem em diálogos mais estruturados,
em que o conflito aconteça em etapas (início, desenvolvimento,
clímax e fim, não necessariamente com resolução), como nos filmes
de Tarantino, Woody Allen, ou nas cenas carregadas de texto, subtexto
e contexto da trilogia O
poderoso chefão,
de Francis Ford Copolla, dá a ideia que as coisas acontecem
rapidamente e, por isso mesmo, o salto de estados de natureza
acontece de modo mais explícito, enquanto o outro modo é mais
tácito.
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Um
exemplo deste problema é o que foi feito com a personagem de Jena
Malone, que representava um contato de Lois Lane (Amy Adams) dentro
do Pentágono. A ótima atriz teve apenas duas cenas, menos de dois
minutos de tela, ambas dialogadas com Adams. Na segunda vez que
aparece revela que a cadeira com a bomba estava revestida de chumbo,
o que impossibilitaria Superman de ver o artefato explosivo.
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Quem
viu ao filme sabe que este é o ponto máximo de conflito interno do
alienígena. Culpa-se este (e é culpabilizado pela mídia) por não
ter impedido a destruição: “Eu não vi, Lois. Não vi, porque não
prestei atenção.” Ora, como bem sabemos, uma das regras básicas
da filosofia ética é: Dever implica poder. Só devo agir porque
posso agir. Superman é culpado pelas mortes não porque as causou,
mas porque não as impediu: sua velocidade, sua invulnerabilidade,
permitiriam que ele contivesse a explosão. Mas para isso, fazia-se
necessário que ele soubesse do perigo, tivesse visto a bomba com sua
visão de raios-X. Mas se estava invisível para ele, nada o obrigaria
a intervir.
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Lois,
contudo, mesmo sabendo que o seu amado perturbava-se por não ter
agido, não lhe comunicou do chumbo da cadeira, aliviando-o do peso
da culpa. Reviravolta que seria até mais interessante do que o que
aconteceu neste filme e no filme anterior: Lane sempre salva o corpo
de Clark. Esta salvação seria muito mais importante, salvá-lo-ia a
alma (esqueçamos, por um momento, que Kent afirma que não olhou,
então sua culpa continuaria).
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Ironicamente,
as únicas cenas em que encontramos um diálogo mais longo que
permitisse a personagem desenvolver sua mentalidade e suas ideologias
como discurso são de Lex Luthor: o seu discurso para os senadores
quando pede acesso ao cadáver de Zod e à nave; o seu discurso “os
capas vermelhas estão chegando” para a Senadora Finch; seu
discurso para um Superman ajoelhado. Todos têm o mesmo tema: o
deus e o pai. Devemos, portanto, assimilar estes como os temas
essenciais do enredo.
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2.
Martha
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Um
dos elementos mais criticados do filme, é o fato de dois homens
poderem se aliar pelo fato que ambos têm mães com mesmo nome. Por
mais fã que eu seja da DC, nunca havia me atentado para tal fato, o
que me deu uma pontinha de inveja da inventividade da trama.
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O
ataque feito a tal instrumento da trama parecem-me injustificados. Se
o assassinato do pai é justificativa para todos os conflitos de
Capitão
América:
Guerra Civil (Tony Stark vs Steve Rogers; T’Challa vs Bucky
Burnes), por que a mãe não poderia unir dois marmanjos órfãos?
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A
cena também lembrou-me uma frase que normalmente é atribuída a
Anton Tchekhov de que, se o narrador mostra um prego no primeiro ato,
no ato final é lá que a personagem deve se matar. Neste sentido, há
uma frase com mesmo encaminhamento, esta atribuída a Alfred
Hitchcock, de que se vemos um revólver num filme, há a obrigação
moral de ser utilizado.
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Ora,
o que isso tem a ver? A primeira cena do filme apresenta o
assassinato dos pais de Bruce Wayne/ Batman (Ben Affleck) – e na
versão cinematográfica, se a memória não me trai, é mais precisa
ainda, porque esta rememoração não é entrecortada pela cena do
enterro –, em que só há um som: o nome Martha
ser pronunciado. Logo, ele deve ser de suma importância na trama.
Mais tarde vemos o herói de Gotham depositar flores no túmulo dos
pais, mas o único nome que vemos é a da mãe, o pai está
encoberto.
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Outras
mães aparecem pelo filme além das duas Marthas, a companheira do
preso com a marca do morcego que é assassinado na cadeia de
Metrópolis, por exemplo. Ora, um dos subtextos do filme é o legado
paterno: Kal-El é o legado de Krypton, assim como a abominação
Apocalypse é a sua vergonha. Clark Kent deve aprender a sair da
sombra daquilo que Jonathan Kent projetou para si. Neste sentido, vai
até as altas montanhas para encontrar com o seu fantasma.
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Ao
contrário do fantasma de Jor-El, que é uma memória
computadorizada, Jonathan Kent é um espírito propriamente dito, um
ente sobrenatural, afinal, conta-lhe uma história que Clark jamais
poderia saber e responde a uma dúvida do filho, logo, não é
memória, nem projeção, a solução não estava em “Clark Joe”.
Não à toa, vai o filho ao topo do mundo, vai ao encontro da morte,
segundo o auxiliar de montanhistas que lhe oferece ajuda para subir a
montanha, Jonathan termina uma sepultura – a sua própria –.
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Finalmente,
o pai morto, sua sombra superada, pode retornar o filho para assumir
o seu lugar devido, sem a interferência da imagem imensa e divina
paterna. Não mais duvida de si mesmo e tornou-se, finalmente, o
Homem de Aço por fora e por dentro – não é mais fragmentário –,
pode ser sacrificado, pois não deve mais nada ao mundo.
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O
mesmo se pode dizer de Bruce. No seu escritório na empresa que leva
o nome da família paterna, vê-se a imagem de seu pai num quadro,
sorrindo sobre o seu ombro. O tempo todo, Alfred chama-lhe atenção
para o legado da família: é a adega que se esvazia; é o herdeiro
que não tem; é a companheira que não acha. O diálogo mais
importante entre os dois é, provavelmente, a afirmação da família:
os Wayne enriqueceram como caçadores, e é isto que ele é: um
caçador de gente, agora há de caçar um deus.
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Aceitar
seu legado como um caçador Wayne é o que vai levá-lo, por fim, ao
ataque final contra a maior de todas as presas: o alienígena com
poderes divinos conhecido pelo planeta como Superman.
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Lex
Luthor, por sua vez, é obcecado pela ideia de pai: odeia-o pela
violência, odeia deus por não tê-lo protegido. Pai e deus são um
só. Como não odiar o pai? É seu único assunto, sua obsessão.
Enriqueceu do nada – realizou o American
Dream –,
e, para ganhar a mídia, batizou sua empresa em nome do filho. Este
quem é? É só mais um herdeiro, ganhou tudo de mão beijada. Não
importa o quanto seja inteligente, ele não tem poder verdadeiro. Não
é um deus como seu pai ou Kal-El.
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Nenhuma
vez, Luthor menciona que já teve mãe. Lex Luthor não teve uma
Martha em sua vida. À Martha, Clark pode recorrer no momento de
desespero e solidão; Martha continuou sendo a imagem perfeita de Mãe
Santa na mente de Bruce. O que torna a personalidade do vilão ainda mais
problemática se lembrarmos da sua frase: “A mulher especial de
todo menino”.
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Luthor,
portanto, caracteriza-se por ser o menino que apanhou do pai, nunca
escapou de sua sombra e nem a imagem santificada e santificadora da
mãe teve para confortá-lo na dor e no sofrimento.
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3.
3 Heróis
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Num
ensaio anterior, comentamos como Superman é, na verdade, uma forma
alegórica da moral ocidental. É na falta da percepção desta
verdade sobre o Homem de Aço que torna problemática a sua
apresentação cinematográfica dos últimos anos.
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Em
Superman
II,
dirigido por Richard Donner com Christopher Reeve, há basicamente o
mesmo nível de destruição de Metrópolis na luta entre os
kryptonianos Kal-EL e Gal. Zod, interpertado por Terence Stamp, que
no filme de Zack Znyder com Henry Cavill e Michael Shannon
respectivamente. A diferença é a capacidade gráfica dos filmes do
século XXI, mais capazes de mostrar toda a destruição possível
quando deuses combatem.
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Uma
segunda diferença, no entanto, é que, no filme de 1980, há uma
aparente preocupação com os civis – Zod chega a usar isto contra
Clark –. O Superman de 2013, por sua vez, demonstra preocupação
genuína com as vidas humanas, fazendo a escolha de matar o general
kryptoniano em prol da população humana. Ora, o assassinato aqui
não é o problema (no filme anterior, a personagem de Reeve
arremessa, sorrindo, um impotente Zod num buraco congelante da
Fortaleza da Solidão no Ártico, presumivelmente matando-o. É
necessário um grau muito alto de ingenuidade para querer ver o
contrário). O problema é o quão gráfico é o ato: a personagem de
Cavill quebra o pescoço da personagem de Shannon.
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O
grotesco da situação encontra-se no fato de que o Superman de 2013
foi jogado àquela situação, um dilema ético: matar um em nome de
muitos ou não? Ao agarrar um dos chifres, este Superman deixa de ser
um modelo moral (isto é, de valores de bem e mal extremamente bem
definidos), para um Kantiano que abandona os seus princípios em
favor do utilitarismo. Infelizmente, este não é o tipo de narrativa
que se presta ao maior super-herói de todos.
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Quando,
na película dos anos ‘70, Zod é levado à morte (como todos os
vilões da Disney, desde a Rainha Má da Branca de Neve, que acabam
morrendo numa queda), o protagonista não passa por nenhum sofrimento
moral.
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A
conclusão é óbvia: Superman não deve ser levado à ação pela
situação, mas agir pelo valor da ação em si: faz o que é o certo
porque representa o valor moral da civilização ocidental.
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Na
morte mais recente de Zod, há um subtexto predominantemente de como
devemos lidar com a situação do terrorismo. O Zod anterior,
representava a ameaça soviética: ataca a Casa Branca, toma o poder,
faz todos curvarem-se ao seu poder: o final traz o Último Filho de
Krypton carregando de volta a Star
Spangled Banner.
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Para
um momento tão adiantado da Guerra Fria, já havia a certeza de como
lidar com o inimigo que viria, de fora, tomar a nossa Liberdade. No
entanto, nós ainda não sabemos como responder diretamente o
problema do Terrorismo.
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Em
BvS,
a primeira cena do Superman, por exemplo, é ele derrubando à força
uma guerrilha africana cujo líder deve responder à Lois Lane se é,
ou não, um terrorista. É uma modificação completa do significado
de Terrorismo: um rebelde civil pode ser muitas coisas – assassino,
estuprador, guerrilheiro, etc. –, mas não um terrorista. A
intervenção do alienígena fantasiado de bandeira estadunidense, no
entanto, só possui duas leituras: intervenção militar de uma
superpotência imperialista estrangeira, ou de terrorismo.
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Passaremos
o filme inteiro acompanhando o martírio do herói por sua
intervenção nesta nação, só para descobrirmos que os rebeldes
guerrilheiros foram armados por empresas armamentistas dos Estados
Unidos. Uma reviravolta típica de um filme de Paul Greengrass.
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Mais
uma vez, ao invés de estabelecer um fio condutor moral do Superman,
quais valores morais, quais virtudes ele deveria representar, Snyder
escolhe colocá-lo numa nova bifurcação ética: como agir diante do
terror, como o Ocidente deve agir diante das imigrações islâmicas,
o que fazer em relação ao ISIS?
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Ele
é uma personagem bastante simples que poderíamos sintetizar em
valoreis morais, no dizer religioso, ou em virtudes, como chamaria
Aristóteles, típicos da herança cultural Cristã-Ocidental:
Coragem, Generosidade, Humildade, Autossacrifício – sim senhor,
pois, assim como nas estórias em que aparecem Bane, Batman há de
ser quebrado e voltar (Rise),
onde quer que se veja o Apocalypse, Superman deve morrer e
ressuscitar, daí as imagens cristãs pós bomba atômica ou de La
Pietá,
quando Batman e a Mulher Maravilha entregam o cadáver de Clark à
Lois –. Deve-se, pois, escrever uma narrativa em que estes valores
sejam enfatizados e, pelo menos uma vez, dar-lhe a oportunidade de
discursar sobre eles.
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O
mais próximo a isso que temos é a discussão entre Kent e White
sobre os valores da imprensa, diálogo, como já mencionei, muito
curto e que, jamais transformar-se-ia em discurso, ainda mais que
Perry White silencia Clark Kent.
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Os
valores são típicos: verdade, justiça, American
Way of Life –
que entra no vocabulário do Homem de Aço, salvo engano, junto com o
McCarthismo, o Superman original, que era, de acordo com o texto, o
“campeão dos oprimidos. A maravilha física que jurou dedicar sua
existência a ajudar os necessitados!”, soaria comunista demais
para a era da Guerra Fria –.
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Por
que, então, acerta-se a mão com o Batman e a Mulher Maravilha?
Porque super-heróis, antes de personagens, são alegorias,
constroem-se de fora para dentro, e, desta feita, esta duas
personagens estão brilhantemente representadas.
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Comecemos
pela Mulher Maravilha de Gal Gadot. Vemo-na nas festas, costas nuas,
vestido até o joelho, porém justo: sensual, mas não excessiva. Dá
seu corpo para ser visto, mas cria uma bolha: admire-me, mas não me vulgarize. Não se impressiona pelo conhecimento de Bruce Wayne,
está tão bem informada quanto ele; mostra que está em outro nível:
“Você não conheceu nenhuma mulher como eu!”. Na luta contra o
monstro, salva Batman da morte certa, posiciona-se ao centro, à
frente dos dois: ela não é a moça indefesa a ser salva como Lois
que se afoga, ela veio ser um membro efetivo do grupo. Quando a
aberração alienígena a derruba, ela simplesmente sorri e salta
sobre ele.
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Se
podemos definir a Mulher Maravilha numa palavra, numa alegoria de
valor moral seria “Empoderamento”. Ora, semideusa, ela é o poder
encarnado, divino. Sua armadura deixa o seu busto à mostra, suas
enormes pernas estão visíveis, mas isso não lhe dá um aspecto
sexual, ainda que erótica seja, mas de guerreira, não veste uma
fantasia, mas uma couraça, sua saia não é de festa, mas de couro
como a das armaduras gregas. Completamente poderosa: Vai à luta
porque quer, veste-se de tal e qual modo porque quer; de todas as
armas usadas contra a criatura, a sua espada foi a mais eficiente.
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Diana
é a imagem perfeita do feminismo: independente, produtiva,
inteligente, sensual. Servindo de mensagem para qualquer menina que a
vir, sem precisar discursar: você, como eu, pode ser o que quiser,
do jeito que quiser.
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O
Batman é largamente baseado na versão de Frank Miller, fascista –
no sentido de uma figura autoritária, um quase louvor à virilidade
e juventude, como poderíamos ver no discurso da personagem sobre o
líder mutante no romance gráfico de Miller, O
cavaleiro das trevas
–, violento, sagaz. A frase de Miller está lá, na boca de
Affleck: “O mundo não faz sentido, a não ser que você force-o a
fazer sentido.” É quase um futurista italiano louvando a bomba e o
motor!
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Este
Batman tem noção plena de sua degradação moral, diz ele a Alfred:
“Nestes 20 anos (…), quantos [homens] continuaram bons?” Esta
pergunta retórica é uma confissão ao mordomo/pai de criação: eu
tinha boas intenções, mas me corrompi à violência.
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Ao
perceber que seu inimigo é um filho de uma Martha, isto é, ao
recriar, em si, o mecanismo da compaixão (“sofrer junto”), da
empatia (“sofrer dentro”, isto é, colocar-se no lugar do outro),
reacendeu na força coercitiva violenta a chama do herói: matar um
filho de uma mulher, não vai impedir que ele se torne mau. Vai
impedir que ele se mantenha bom. Como projetou o seu próprio
fracasso como herói em Clark, intenta sentenciá-lo à pena capital
só pela possibilidade do crime: o julgamento prévio.
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Novamente,
estamos diante da problemática terrorista e da questão dos
imigrantes. Como garantir que, entre os refugiados, não haja um
terrorista? Não se pode. Qual a solução? Para aqueles que
corroboram o pensamento iniciático de Bruce Wayne, expulse-os todos,
mate-os antes que explodam o Capitólio com seu “falso deus”.
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Mas
Clark transforma em Bruce: “Falhei com ele em vida, não vou falhar
com sua morte.” Encontra outra solução: encontrar mais
meta-humanos para enfrentar as ameaças alienígenas. Basicamente,
juntar e treinar refugiados para combater os que, dentre eles, são
terroristas.
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Interessante
será, no futuro bem próximo, ver como o sisudo protofascista Wayne
comportar-se-á com o estreitamento de sua relação com a empoderada
Diana. Ainda mais, qual será a sua reação ao encontrar-se com o
ressurrecto alien que distorce a gravidade terrestre.
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4.
O sacrifício
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Não
se bota um revólver num filme se ele não será disparado. Não se
bota o Apocalypse numa narrativa do Superman se não o assassinar. Há
certas coisas certas nestes mundos de celulose e nitrato de celulose.
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O
sacrifício, o maior valor cristão, no entanto, numa narrativa, só
deve ser usado numa aporia (“sem saída”). Jogar o maior herói
de todos contra um monstro destruidor quando este estava enfraquecido
e amarrador foi tolice – ainda mais que uma lança poderia ser
arremessada, sobretudo quando dois dos maiores lutadores da ficção
estão presentes –.
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Gravíssimo
problema é, justamente, a ausência de dramaticidade na morte
anunciada.
Não há uma sensação de urgência, de aporia. O espectador percebe
que há outros meios, outras alternativas. Desta maneira, o salto de
Kal-El para a morte parece extemporâneo.
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Desta
forma, parece um recurso ao Deus
ex Machina
quando Lois Lane descobre sozinha a necessidade da lança que ela
jogara na água. Ao tentar buscá-la fica presa, quase afoga-se e,
por incrível que pareça, o fim das batidas de seu coração são
percebidas por Clark, mesmo em meio àquela batalha gigantesca. A
situação piora: a radiação, dentro d’água, fá-lo desmaiar,
mas voar contra o monstro segurando a lâmina, não.
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A
cena poderia ser resolvida, por exemplo, invertendo a posição entre
Superman e Mulher Maravilha. Ela estaria sendo massacrada, Superman
agarra-o, Batman atira, Mulher Maravilha realiza o golpe. Qualquer
coisa que passasse a sensação de não haver nenhuma outra saída,
do jeito que foi narrado, no entanto, parece gratuito.
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5.
Conclusão
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Os
defeitos de BvS
são evidentes, talvez por isso muita gente se sentiu incapaz de ler
as suas qualidades ao ver o filme. As ideias são boas, as cenas são
lindas, as lutas impressionantes, no entanto faltou alguém que
transformasse o roteiro em narrativa: uma sequência de causas e
efeitos verossimilhantes. Alguém que questionasse a função de Lois
Lane novamente no combate, que questionasse a ausência de urgência
no sacrifício de Superman, que questionasse a estruturação das
cenas.
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Interessante
notar que quando Snyder está acompanhado por um grande escritor nos
roteiros, produz
grande obras, algumas vezes chamadas de visionárias. Quando escreve
sozinho os filmes que vai dirigir acaba com produções deficitárias.
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Reconhecer
o problema é o primeiro e mais importante passo para solucioná-lo.
Mãos à obra.
Thiago
Fernandes,
27/12/16-08/01/2017