quinta-feira, 26 de março de 2020

IMPETUOSA


Medusa és a mais fiel serva da Mãe de Deus.
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Até aquela noite limpa de Céu em que serás estuprada pelo teu tio sobre a cama de tua mãe. Inaceitando tanta culpa e falta de decoro, tua mãe, mais certa impossível, te expulsará de casa para que vivas nas ruas e nas grutas das górgonas, nas terras da noite eterna.
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Teus cabelos serpentearão, teus dentes presificarão, o teu olhar aterrador de quem tem medo de tudo te petrificará.
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Nunca viria teu salvador. Só aquele terrível de espelho e falo às mãos. Nunca veria teu salvador: ele chegara como um ladrão na noite, asas aos pés, máscara invisível à face. O que esperar de quem se esconde nas sombras e, contra nós, usa de nossa própria fealdade?
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Só teus olhos tão mortais deteria a Baleia, só teus olhos tão vivos e vis do passado salvariam a princesa africana deste navio de sequestradores. Só teus olhos de ódio a libertariam. Mas este ódio ficou para trás, gravado naquele espelho que tua mãe carrega.
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Tu serás para sempre esta egualada e o que restará de teu passado será apenas a arma de teus olhos e aquele ente profano do falo dourado, teu primo-filho, gigante horrendo, pai de monstros.
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Tu serás libertada só para ser montada de novo pelo dono do cabresto de ouro, presente de tua mãe para o sobrinho que, à filha agora salva, lhe tapará a boca e lhe mostrará as rotas que deve seguir. Serás conduzida para a casa de tua mãe; lá, serás apascentada em fonte calma; e, aquele que lá te espera, como o inimigo à traição, cingirá teu pescoço com tal laço, tão bela correia, tão brilhante prisão.
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Tu matarás a tua inimiga, as três cabeças: a objetificação peçonhenta; a exploração flamejante; a chauvinista devoradora.
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Então, tu o derrubarás para bailar só no Céu. De donzela a monstro das águas subterrâneas, dos esgoto das cidades, dos tremores dos dias. De monstro a quimera matadora da Quimera. A ser solar e cerúleo. De prisioneira a libertadora.
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Se, do Céu, pelo teu domador, mataste teu sonho mais estranho, agora, livre de qualquer cela, teu bailado é pura poesia, além de qualquer devaneio, o sublime do sublimado. Concebida na tortura, parida na violência, educada na chibata, libertada na dor pela ferroada da vespa voatriz.
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O cabresto dourado nunca mais a amansará, tu, dona das estrelas, senhora dos Céus, a que pode cavalgar no Olimpo; só tua dança é perfeita de sonhos e quem bebe da água de teus cascos poeta para sempre será; os tão belos cachos que tanto te orgulhavam e que atraiu o ódio do tio e da mãe, não mais serpes, mas ondas de nuvens; estes cachos doces e flexíveis só poderão ser desejados como as brisas nos espaços finitos entres os saltos de todas as bailarinas.
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Quando virá teu salvador?
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Será aquele que a decapitou e a usou para seu benefício contra seus inimigos? Será aquele que a amarrou e a usou para seu benefício contra seus inimigos? Será aquele que a emprenhou de gigantes e monstros? Será aquela que sempre a julgou e presenteou teus adversários com os instrumentos de tua dor e derrota?
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Tu foras a beleza do templo, das virgens da Mãe dos Céus; tu foras a mais mortal das górgonas das ruas, distribuindo e injetando o veneno das cobras de teu olhar; tu foras filha, sobrinha, mãe, prima e vítima. Tu foras o silêncio das casas fechadas; os segredos das famílias mais puritanas; a culpa das mulheres mais penalizadas; os horrores mais escondidos; as vinganças jamais concretizadas.
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Tu foras, foras, foras fora e forra.
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Quando será tua salvação?: Quando adorava-se no espelho pelas manhãs?; Quando assediada à noite pelos covis?; Quando em monstro metamorfoseada para as trevas?; Quando assassinada para presente de casamento?; Quando domada para a glorificação daquele?; Quando será a tua salvação?
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Não era a Quimera tua igual? Pelo contrário: de tão parecidas e tão próximas são as inimigas por excelência. Uma o sonho disforme, o pesadelo, a perdição, o monstro fêmea devoratriz que nunca se liberta, pois, ao fugir do controle do seu rei, não irmana, apenas mata e devora e envenena e queima e urra e oprime e se prende no seu jogo eterno de dor. Tu serás voo, força, destreza e, quando finalmente livre, só poderás buscar os Céus.
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Tudo o que não serás é esta gêmea, as três faces da opressão, as três bocas do poder, a aberração disforme de quem não tem direção: ora olha à frente, agarrando com as patas da leoa; ora olha para os lados incapaz de ver acima, saltando com os cascos da cabra; ora olha para trás, farejando com a língua draconiana. Ora olha todos os caminhos, mas não pode ver nada, pois é opressão e só assiste a morte.
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Teu corpo alado, no entanto, é a fonte de todas as águas, a razão de toda a criação, a vingança perfeita contra teus malfeitores.
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E aquela que teu rosto antigo salvou? O que é dela quando resgatada do sequestro do monstro marinho, dos grilhões na roca? Aquele rosto não é mais o teu, é a égide da tua antiga protetora, tua eterna algoz. Quem é salva pela potência do ódio, pelo olhar petrificador do medo, jamais é libertada realmente, mas cativa sempre de quem deveria governar.
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Quando é que viriam te salvar?
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Bate o casco no chão, abre as asas em toda a tua envergadura e vai se elevar para onde são guardados todos os relâmpagos, raios, lampejos e trovões. Lá, então, será tua nova casa, onde reside o verdadeiro poder, onde só há luz e som.
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Pois os trovões nada mais são que o ritmado dos teus cascos nas nuvens; as ventanias, tuas asas velozes; os lampejos, o rebolar de tua crina.
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Nunca mais te importunarás com o hediondo espelho. Nunca veria o teu salvador. Porque salvara a ti mesma.






domingo, 22 de março de 2020

MARCHINHA PARA QUEDA

Profetizou o haitiano:
A economia matou;
Contra um vírus não lutou;
Fascista e miliciano;
"O Bolsonaro acabou!"

22/03/2020

segunda-feira, 16 de março de 2020

PÓS-VOCÊ

Minha vida sem você
É a janela aberta
Depois da chuva e lama
Com o Sol já desperto

Minha vida sem você
Como a primavera
Que chega e areja o dia
Ficou limpa e leve

Minha vida sem você
É tão sem tristeza
Que esqueci como sorrir,
Ou chorar, ou ver

Minha vida sem você,
Amargor ou medo
Que, à noite, desperto estranho
Atrás de desprezo

Pois, na vida com você
Meu corpo em sofrer
Foi tratado que ar limpo
Parece veneno

E, agora, no sem você
Meu corpo outro ser
Tão livre, puro e inquieto
Está em renascer