Medusa
és a mais fiel serva da Mãe de Deus.
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Até
aquela noite limpa de Céu em que serás estuprada pelo teu tio sobre
a cama de tua mãe. Inaceitando tanta culpa e falta de decoro, tua
mãe, mais certa impossível, te expulsará de casa para que vivas
nas ruas e nas grutas das górgonas, nas terras da noite eterna.
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Teus
cabelos serpentearão, teus dentes presificarão, o teu olhar
aterrador de quem tem medo de tudo te petrificará.
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Nunca
viria teu salvador. Só aquele terrível de espelho e falo às mãos.
Nunca veria teu salvador: ele chegara como um ladrão na noite, asas
aos pés, máscara invisível à face. O que esperar de quem se
esconde nas sombras e, contra nós, usa de nossa própria fealdade?
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Só
teus olhos tão mortais deteria a Baleia, só teus olhos tão vivos e
vis do passado salvariam a princesa africana deste navio de
sequestradores. Só teus olhos de ódio a libertariam. Mas este ódio
ficou para trás, gravado naquele espelho que tua mãe carrega.
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Tu
serás para sempre esta egualada e o que restará de teu passado será
apenas a arma de teus olhos e aquele ente profano do falo dourado,
teu primo-filho, gigante horrendo, pai de monstros.
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Tu
serás libertada só para ser montada de novo pelo dono do cabresto
de ouro, presente de tua mãe para o sobrinho que, à filha agora
salva, lhe tapará a boca e lhe mostrará as rotas que deve seguir.
Serás conduzida para a casa de tua mãe; lá, serás apascentada em
fonte calma; e, aquele que lá te espera, como o inimigo à traição,
cingirá teu pescoço com tal laço, tão bela correia, tão
brilhante prisão.
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Tu
matarás a tua inimiga, as três cabeças: a objetificação
peçonhenta; a exploração flamejante; a chauvinista devoradora.
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Então,
tu o derrubarás para bailar só no Céu. De donzela a monstro das
águas subterrâneas, dos esgoto das cidades, dos tremores dos dias.
De monstro a quimera matadora da Quimera. A ser solar e cerúleo. De
prisioneira a libertadora.
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Se,
do Céu, pelo teu domador, mataste teu sonho mais estranho, agora,
livre de qualquer cela, teu bailado é pura poesia, além de qualquer
devaneio, o sublime do sublimado. Concebida na tortura, parida na
violência, educada na chibata, libertada na dor pela ferroada da
vespa voatriz.
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O
cabresto dourado nunca mais a amansará, tu, dona das estrelas,
senhora dos Céus, a que pode cavalgar no Olimpo; só tua dança é
perfeita de sonhos e quem bebe da água de teus cascos poeta para
sempre será; os tão belos cachos que tanto te orgulhavam e que
atraiu o ódio do tio e da mãe, não mais serpes, mas ondas de
nuvens; estes cachos doces e flexíveis só poderão ser desejados
como as brisas nos espaços finitos entres os saltos de todas as
bailarinas.
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Quando
virá teu salvador?
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Será
aquele que a decapitou e a usou para seu benefício contra seus
inimigos? Será aquele que a amarrou e a usou para seu benefício
contra seus inimigos? Será aquele que a emprenhou de gigantes e
monstros? Será aquela que sempre a julgou e presenteou teus
adversários com os instrumentos de tua dor e derrota?
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Tu
foras a beleza do templo, das virgens da Mãe dos Céus; tu foras a
mais mortal das górgonas das ruas, distribuindo e injetando o veneno
das cobras de teu olhar; tu foras filha, sobrinha, mãe, prima e
vítima. Tu foras o silêncio das casas fechadas; os segredos das
famílias mais puritanas; a culpa das mulheres mais penalizadas; os
horrores mais escondidos; as vinganças jamais concretizadas.
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Tu
foras, foras, foras fora e forra.
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Quando
será tua salvação?: Quando adorava-se no espelho pelas manhãs?;
Quando assediada à noite pelos covis?; Quando em monstro
metamorfoseada para as trevas?; Quando assassinada para presente de
casamento?; Quando domada para a glorificação daquele?; Quando será
a tua salvação?
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Não
era a Quimera tua igual? Pelo contrário: de tão parecidas e tão
próximas são as inimigas por excelência. Uma o sonho disforme, o
pesadelo, a perdição, o monstro fêmea devoratriz que nunca se
liberta, pois, ao fugir do controle do seu rei, não irmana, apenas
mata e devora e envenena e queima e urra e oprime e se prende no seu
jogo eterno de dor. Tu serás voo, força, destreza e, quando
finalmente livre, só poderás buscar os Céus.
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Tudo
o que não serás é esta gêmea, as três faces da opressão, as
três bocas do poder, a aberração disforme de quem não tem
direção: ora olha à frente, agarrando com as patas da leoa; ora
olha para os lados incapaz de ver acima, saltando com os cascos da
cabra; ora olha para trás, farejando com a língua draconiana. Ora
olha todos os caminhos, mas não pode ver nada, pois é opressão e
só assiste a morte.
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Teu
corpo alado, no entanto, é a fonte de todas as águas, a razão de
toda a criação, a vingança perfeita contra teus malfeitores.
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E
aquela que teu rosto antigo salvou? O que é dela quando resgatada do
sequestro do monstro marinho, dos grilhões na roca? Aquele rosto não é mais o teu, é a
égide da tua antiga protetora, tua eterna algoz. Quem é salva pela
potência do ódio, pelo olhar petrificador do medo, jamais é
libertada realmente, mas cativa sempre de quem deveria governar.
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Quando
é que viriam te salvar?
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Bate
o casco no chão, abre as asas em toda a tua envergadura e vai se
elevar para onde são guardados todos os relâmpagos, raios, lampejos
e trovões. Lá, então, será tua nova casa, onde reside o
verdadeiro poder, onde só há luz e som.
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Pois
os trovões nada mais são que o ritmado dos teus cascos nas nuvens;
as ventanias, tuas asas velozes; os lampejos, o rebolar de tua crina.
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Nunca
mais te importunarás com o hediondo espelho. Nunca veria o teu
salvador. Porque salvara a ti mesma.