sábado, 31 de agosto de 2019

A LIBERDADE É GRATUITA

É gratuita a Liberdade
Porém dinheiro é prisão
As águas o ar a amizade
As matas têm gratuidade,
Mas Mercadoria, não

Vende o corpo por salário
Pra poder comprar a vida
Este método arbitrário
É cruel e autoritário,
Mas Mercado é sem saída

O medo nos paralisa
Na ausência de consciência
Trabalho nos humaniza,
Mas o Mercado escraviza
Comprando a nossa vivência

A gente só muda o mundo
Quando se transforma a gente
Não se vê porque profundo,
Mas o Mercado é, no fundo,
Gaiola de aço pra mente

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

SAMBA-SONETO

Não vou pedir pra você ficar
Na estrada é melhor de caminhar
No coração a gente não manda
Inda mais quando o passo é demanda
E a rua está sempre a nos chamar

O teu rosto viu a cor da brisa
Reflita no azul que não se pisa
O querer de voar te comanda
Não tem rastro quem veloz se manda
Nem vestígio deixa na camisa

Só é pura a pista quando se anda
Mas é vil o ferro da gaiola
E cruel ter ternura tão branda.

Te dou amor, mas não peço esmola!

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

MARGARIDAS

A estrada nos traz feridas
Mas faz mudar nossas vidas.
Marcham muitas flores e anjas:
Quem nasce pra ser laranjas
Jamais será Margaridas!

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

CONTINENTE

Vou maratonar por teus morros e trilhas
Tocar pelos teus montes e matas
Errar por tuas praias e tuas águas
Navegar nu por teus límpidos rios

Por teus vales e depressões paradisíacos
Percorro portos e estradas tão seguras
Viajo nas tuas imperfeições maduras
E pelos teus magníficos precipícios

E ao saciar-me de teu continente
Peregrino fugirei para outras partes
Esquecer-me triste noutras artes
Até encontrar-me de volta feito penitente

SONETO

E todo o teu poder virará pó
D'ouro se desmanchando no chão!
Tens muito dele, mas lutarás só!
     Fardados fuzis por ti marcharão;
     Narrativas da mídia as consciências
     Como mercadorias venderão;
Os doutores da Igreja e das ciências,
E as frias leis do Estado são por ti,
Pois possuis toda a força e violências.
     Findará a paciência dos daqui,
     Cansados de apanhar, da fome ingrata,
     Vender trabalho sem jamais sorrir.
Verás um dia o Morro igual cascata
Quando a Terra em resíduo for tornada.

DE MÁRTIRES E TIGRES

Socialismo ou barbárie
Do Fascismo. Quando a crise
Embrutecer, nos avise:
Não seremos vossos mártires,
Pois saberemos ser tigres!

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

DESASSOMBRADO - Parte 5 - Final


1: Como não, excelência? Se toda a questão aqui é que meu cliente perdera o CPF, logo, o título de propriedade de si mesmo depois de um processo burocrático que se dá início com a emissão do atestado de óbito! É o Estado que comprova que nascemos, com o registro, assim como antes, a Igreja comprovava com a documentação batismal. O Estado prova que estamos vivos com o CPF e que somos quem somos. Lembremos, meritíssimo, que não é o RG que parece conosco, mas nós é que somos idênticos a ele.
2: Mas o Estado já emitiu o atestado que seu cliente morrera há mais de trinta anos!
1: No entanto, o que meu cliente exige é que se declare, que se reconheça, não que ele morreu, muito menos que nasceu, mas a sua qualidade de pós-vivo!
2: Isto é um absurdo, sr. advogado!
1: Como absurdo, excelência?, meu cliente está pós-vivo bem na sua frente!
2: A bem da verdade, eu “o” vejo, ainda que translúcido.
1: E como das provas de sua ligação, por assim dizer, “telúrica” com o seu patrimônio, fez-se mister transportarmos alguns tijolos do porão onde atentou contra a sua propriedade primeira.
2: Realmente elucidativo neste mister.
1: O mister maior, no entanto, excelentíssimo míster (perdoe-me o chiste) [ambos sorriem satisfeitos do agradável gracejo], é, esta face atormentada aqui, carregada por algumas “células” de sua grande angústia, não sensibiliza v. ex. para o seu caso? Veja tanto sofrimento (eterno, eterno devo relembrar sempre, porquanto o imóvel esteja “de-pé”) sem fim numa casa abandonada (e para sempre abandonada, não me escuso em dizer, porquanto o meu cliente esteja “aqui”)? Há uma correlação inexorável presentificada. Ou, perdoe-me o tom de ultimato, magistrado, mas, ou bem se reconhece o meu cliente como o pós-vivo-consciência de uma propriedade privada física, ou demole-se a casa e “mata-se” a ambos.
2: É muito, mas muito mesmo no que pensar mesmo. Antes que eu decida, porém, o seu cliente gostaria de se manifestar ao juízo sobre o seu caso?
3: AaaaaaaaaAAAAAAaaaaaaAAAAAAAaaaaH!!!!
1: Deveras eloquente, deveras!
2: O sr. me deixa numa encruzilhada: se eu indefiro a sua pedida, nego ao seu cliente o direito à sua propriedade privada; se defiro, concedo a uma casa o direito a ser proprietária de si mesma, portanto um indivíduo. De qualquer sorte, estarei fragmentando os alicerces da nossa sociedade que é a relação contratual entre os corpos. O que mais me assusta é que esta sua doutora em linguística sobrenatural tenha criado o direito fantasmagórico!
3: AaaaaaaaaAAAAAAaaaaaaAAAAAAAaaaaH!!!!

DESASSOMBRADO - Parte 4


1: Página 37: “O que é um indivíduo? A sua definição é daquele que tem a propriedade de si mesmo. Mas como pode um corpo possuir a si mesmo? É logicamente impróprio, assim como, uma casa não pode possuir a si mesma. Quem tem a propriedade do corpo é a alma, este duplo de linguagem do corpo.
A alma é as memórias. Ela que dá forma à consciência: só se pode falar de si naquilo que se lembra de si. E o que são as memórias? Sensações, emoções, sentimentos – tudo aquilo que agrupamos como experiências de afeto com o mundo – que se conectam em forma de redes neurais.” Aqui, novamente, uma explicação breve de como se dá a formação destas redes de processos sinápticos. E vamos para a página 38, três últimos parágrafos do texto: “As cicatrizes, as rugas, as manchas e sinais do corpo, cada estria, cada dor crônica na nossa biologia são mementos, ecos impregnados de nossas experiências. Assim como a casa tem alas, paredes, cozinha, banheiros, biblioteca, sala de estar; o corpo humano tem braços, ossos, estômago, intestino, cérebro, coração. Cada tijolo numa casa assombrada assemelha-se a cada célula de nosso organismo. Portanto, a nossa matéria é a nossa primeira casa assombrada.
Da mesma forma, o planeta inteiro é uma mansão assombrada, a coletividade humana é a consciência geral de Gaia!
Desassombrar um corpo é matá-lo. Separar uma alma de sua casa é matá-la. Uma casa desassombrada é sem vida: ninguém lá sofreu, mas também ninguém lá gozou! Se um indivíduo é proprietário de si mesmo, de seu próprio corpo, quem mais seria o verdadeiro proprietário de uma casa senão as suas assombrações?”
2: [Segurando uma lágrima no olho esquerdo.] E onde o senhor quer chegar com isso?
1: Separar o meu cliente da casa seria matá-la.
2: Uma casa não é um ser vivo para morrer, sr. advogado.
1: Data vênia, excelência, uma casa assombrada É uma casa viva. Ela tem memória, tem consciência. Da mesma forma, uma pessoa desassombrada é um cadáver.
2: A sua lógica é venenosa. O senhor está fazendo associações impróprias.
1: Impróprias não, excelência. Data máxima vênia, peticiono a v. ex. que considere o meu cliente como proprietário da residência que assombra da mesma forma que se considera uma Pessoa Física proprietária de si mesma.
2: Isso seria um absurdo! Neste caso, eu garantiria a uma casa os direitos da “pessoa humana”.
1: Mas, excelência, não é justamente esta a natureza da petição e o argumento central do artigo da doutora: o ser humano, como proprietário de si mesmo, nada mais é do que uma casa habitada por uma assombração. Negar ao meu cliente o corpo que ora possui, mas que não foi lhe dado por Deus, é matá-lo uma segunda vez! V. Ex. não crê em Deus, meritíssimo?
2: Sr. advogado, isso é desacato!
1: Mas é um ponto válido na minha argumentação.
2: De fato, como todo cidadão de bem, creio em Deus, mas o que isso vem ao caso?
1: Ora, todo filho de Deus tem como a sua primeira propriedade natural no seu corpo. Mas não somos apenas corpo. A alma sobrevive à experiência física e, sem poder dirigir-se a um final metafísico adequado, aqui ficou presa. Mas, é assim porque Deus quer. Preso ao novo corpo do qual é inseparável. Deus se encarregou de prender meu cliente à residência a qual possui “laço de sangue”, assim como prendeu a mim e ao senhor, meritíssimo, a esta “residência” a que somos ligados por herança familiar.
2: Ainda assim, mesmo que verossímil a argumentação, o corpo que Deus nos dá é um direito natural inalienável, não precisamos de um documento emitido pelo Estado para atestar a posse deste bem; ao contrário de um direito natural à propriedade privada que é constituída por homens, logo alienável sobre certas circunstâncias (como a compra e venda). Só a burocracia estatal pode realizar, no molde formal, as relações corporais entre pessoas físicas e jurídicas. Repito, não precisamos de documentos para provar que possuímos o nosso corpo!


DESASSOMBRADO - Parte 3


2: Ainda que seja, é O Estado: a fonte das leis e dos documentos. O deus jurídico! O espírito santo do direito!
1: E o que o Estado pretende fazer com o imóvel do meu cliente? Ninguém lá vive, ninguém quer lá viver. Deixe para os mortos, então!
2: Os mortos? Qual outro pleiteia a propriedade além de seu cliente?
1: De acordo com meu cliente, estão todos lá. São 148 anos de história familiar. O meu cliente lá se encontra há 93 anos. Ele afirma, veementemente, que todos os seus familiares que viveram na sua casa ainda permanecem lá, mas os vivos não a querem.
2: É a palavra do seu cliente. Não temos como provar isso.
1: Ainda assim, os vivos não a querem, deixemos para os mortos, então!
2: Os vivos não a querem porque o seu cliente (e talvez a sua família toda que o sr. afirma tão reiteradamente que lá ainda permanece) as espanta!
1: Pelo contrário, meritíssimo. Anexamos à nossa pedida um laudo técnico de especialista que afirma que meu cliente não pode ser responsabilizado pelo medo dos outros moradores.
2: Que tipo de especialista o sr. poderia ter arrumado para isso?
1: O doutorado dela é em análise do discurso jungiana com forte influência dos estudos lacanianos sobre o tema.
2: Muito bem, prossiga.
1: Aqui, nesta passagem da página 7 diz, eu cito: “O que é um fantasma? São os resíduos de uma alma que permanecem ancorados nos mesmos traumas, sem jamais sublimá-los […]. São os assuntos inacabados que, recalcados na nossa memória, impregnam-se psiquicamente em objetos em que investimos nossos desejos, gozos e sofrimentos, tornando-se, estes objetos, a representação simbólica destes sentimentos investidos.”
2: O que isso tem a ver com o medo dos vivos não serem de responsabilidade de seu cliente?
1: Com a máxima vênia, meritíssimo, é necessário que possamos concluir a natureza do meu cliente, para poder comprovar a sua necessária ligação com o imóvel.
2: Prossiga, então.
1: Na página 19: “É certo que fantasmas, portanto, como não são pessoas físicas…
2: Está vendo, a especialista concorda…
1: Deixe-me continuar, por favor…
2: Desculpe-me, continue.
1: … como não são pessoas físicas, não podem criar novas experiências. Estão obrigados a repetir os mesmos gestos, as mesmas dores, as mesmas vergonhas; ser um fantasma é, em si, uma punição, um ‘purgatório’ como exemplifica o imaginário cristão ocidental. Quando falamos de casas assombradas (quase sempre associadas ao advérbio mal, por quê?) a potência destes gestos é amplificada exponencialmente. Basicamente, cada tijolo da residência se vê impregnado de uma memória.” Daí a autora segue com explicações biológicas do funcionamento da memória e prossegue, no finzinho da página 21 para 22: “É costumeiro ouvir sempre as mesmas queixas de gritos, gemidos, choros. São as dores que ficam. O sofrimento humano é a forma mais contundente de memória que temos.
Mas não é só isso que se encontra lá, nas paredes de uma casa assombrada. Há dores sim; crimes, suicídios e grandes atos de violência deixam uma onda emotiva impregnante fortíssima que se estende além do tempo, mas confinada no espaço – a não ser que se reconfigure e se ressignifique na forma de linguagem, quando tudo, então, se sublima e, mesmo mantendo o seu emotivo caráter, torna-se incapaz, por virtude da própria catarse, de infectar mais, ‘exorciza-se’, por assim dizer, a metástase da dor e da loucura –” E, convenhamos, v. ex., esta casa está cheia destas dores: assassinatos, estupros de escravas, os atos finais do cliente contra a sua mulher, o que não faltam são dores para serem ouvidas pela casa! Mas, deixe-me terminar a passagem: “loucura –. Todo o ‘espectro’ emotivo emana dos ‘espectros’ sonâmbulos, algozes de si mesmos, arrastando suas correntes metonímicas pelos vales dos vãos das janelas e frestas das portas.
Há, também, gozo pelos quartos, há risos pelos corredores, os sons de passos não são apenas os pesados e lúgubres, mas a carreira feliz de crianças. Há os almoços em família, os beijos escondidos, mesmos as infidelidades conjugais que se espalham pelos cantos escusos, não trazem apenas vergonha, mas vêm carregadas do prazer do interdito. Tudo que é proibido e descoberto e redescoberto. ‘Tudo que é familiar, mas veio à luz’.
Poucos ‘vivos’ podem sentir isso. A nossa antena mundana apenas se esqueceu de como captar, sofrer é muito mais humano.” Fim da citação.
2: Então, o sr. propõe que a culpa é das vítimas.
1: Não, apenas que não há vítimas neste caso. Os novos moradores se apegam ao feio dos mortos porque é mais fácil do que buscar os seus belos, muito mais profundo e sutil.
2: É a sina de todos os que estamos vivos!
1: Para finalizar, meritíssimo, gostaria de ler o trecho final deste laudo/parecer/ensaio, se v. ex. me permite.
2: Sim, conclua, mas seja breve.


DESASSOMBRADO - Parte 2


1: E em que ponto não possuir um corpo cria um impedimento legal em possuir uma casa?
2: Se a pergunta em si não fosse absurda o suficiente, sr. ad-vo-ga-do, apenas corpos podem possuir CPFs, portanto, apenas corpos podem assinar escrituras e serem juridicamente válidas. As relações legais são feitas entre corpos.
1: Mas o corpo do meu cliente encontra-se enterrado no cemitério…
2: Já basta, sr. advogado! Ao falecer, o CPF é cancelado!
1: O que não impede que meu cliente possa conseguir outro e, destarte, solicitar que a propriedade do imóvel seja transferido para o novo número do meu cliente!
2: Impede sim, sr. advogado, um fantasma não possui corpo, logo, não pode pleitear um cadastro de pessoa FÍ-SI-CA!
1: Data vênia, meritíssimo, e a Vale?
2: O que tem a Vale?
1: Ela é uma empresa, não possui pessoa física, porém, possui propriedades formalizadas pelo Estado!
2: As empresas são pessoas jurídicas.
1: O mesmo caso aplica-se ao meu cliente. Não é uma pessoa física, mas pode ser reconhecido, por este tribunal, como pessoa jurídica.
2: Se este juízo assim o reconhecer, abriria uma jurisprudência que este juízo não possui competência para criar. Outrossim, empresas devem possuir uma sede física, o que não é o caso de seu cliente.
1: Como não, meritíssimo, a própria casa do meu cliente é sua sede, isto é autoevidente.
2: Ainda assim, o que é “autoevidente”, sr. advogado, é que sem um corpo, o seu cliente não pode responder como pessoa jurídica também.
1: Pessoas jurídicas não possuem corpos, meritíssimo!
2: As pessoas jurídicas possuem proprietários físicos corporais ou são formados por um corpo de diretoria de associados anônimos que respondem pelos maus atos das suas empresas!
1: Como a Vale?
2. Como a Vale!
1: Mas, meu cliente pode responder como a consciência de uma pessoa jurídica! Uma espécie de meio termo!
2: Não existe, no Estado moderno, um meio termo entre ser jurídico e ser físico. A pessoa física é sempre proprietária de alguma coisa. Como o Estado poderia processar o seu cliente, sr. advogado, se ele não é uma pessoa física, portanto, não poderia responder por uma pessoa jurídica. Nós criaríamos uma entidade inimputável em que a força e monopólio da violência não a alcançaria, o Estado não pode responder por isso.
1: Ora, o Estado em si é um ente fictício! É uma sociedade contratualizada por leis e normas jurídicas, por procedimentos impessoais, sem um corpo físico que responda juridicamente por ela, pelo contrário, o Estado é a papelada; burocratas e políticos são os seus agentes e gerentes que se responsabilizam por parte do que podem ou não fazer. Mas, o Estado, ele é uma ficção, o Estado, v. ex., é um fantasma!


DESASSOMBRADO - Parte 1


1: Bom dia, meritíssimo, estou aqui hoje para pleitear, em nome de meu cliente, a propriedade legal da sua casa.
2: Desculpe, sr. advogado, mas não estou entendendo corretamente a pedida do seu cliente. Como é que ele deseja isso? Acredito que seja algo que ele não possa pleitear.
1: Por que não, meritíssimo?
2: A casa deixou de ser de seu cliente há muitos anos. Depois que ele a deixou, houve, pelo menos, três outros donos.
1: Mas, meritíssimo, meu cliente jamais deixou a sua casa!
2: Como não?, ele deixou a todos nós!
1: Pelo contrário, meritíssimo. Aquela casa fora construída pelo seu bisavô. Lá, sua avó nasceu, cresceu, casou-se e teve o pai de meu cliente. Da mesma forma, o pai do meu cliente herdou sua casa, lá cresceu, casou e também morou toda a sua vida e deixou de herança para o meu cliente, portanto, o dono legal da propriedade.
2: Mas, sr. advogado, ao deixá-la e a todos nós, como eu já afirmei (e está bem claro, aqui, documentado nos autos), houve, pelo menos, mais outros três donos depois do seu cliente.
1: Por isso, devo reafirmar, que este não é o caso do meu cliente.
2: Como não, sr. advogado?
1: Ora, meritíssimo. Meu cliente também nesta casa nasceu, cresceu. Criou lá uma grande rede de laços afetivos. Casou-se, duas vezes, as suas duas mulheres moraram lá com ele. Todos, TODOS, os seus quatro filhos lá moraram com o pai. Viveu, gozou, sofreu, morreu naquela casa.
2: Matou-se, o sr. quer dizer.
1: A forma da morte não vem ao caso, meritíssimo.
2: Como não vem ao caso, sr. advogado? Esta é a única prova que eu preciso para indeferir a pedida do seu cliente.
1: O que vem ao caso, meritíssimo, é que há trinta anos ninguém mora mais naquela casa. Ninguém a comprou, ninguém a alugou, ninguém lá VIVEU, como meu cliente lá vivera por mais de seis décadas, quase cem, CEM, anos, sem jamais abandoná-la, meritíssimo, diferentemente dos novos donos passados. Caso clássico, meritíssimo, de usucapião, excelência, se não quisermos levar em conta a propriedade como herança.
2: Herança não poderia ser, jamais, porque outras famílias compraram a casa. Não há sentido de que seu cliente herde a propriedade alheia.
1: É justamente por isso que requeremos, de v. ex., o usucapião do imóvel.
2: Um fantasma não pode ter propriedades, sr. advogado!
1: Ora, por que não? Desconheço qualquer cláusula legal que proíba meu cliente, ou qualquer outro fantasma, de ter a propriedade de um imóvel. Negá-la seria negar a propriedade como um direito humano básico.
2: Seu cliente não é humano, sr. advogado.
1: Data vênia, meritíssimo, como o v. ex. pode afirmar isso? Qual a jurisprudência em que o sr. se baseia?
2: O seu cliente, sr. advogado, não-pos-sui-cor-po!