1:
Bom dia, meritíssimo, estou aqui hoje para pleitear, em nome de meu
cliente, a propriedade legal da sua casa.
2:
Desculpe, sr. advogado, mas não estou entendendo corretamente a
pedida do seu cliente. Como é que ele deseja isso? Acredito que seja
algo que ele não possa pleitear.
1:
Por que não, meritíssimo?
2:
A casa deixou de ser de seu cliente há muitos anos. Depois que ele a
deixou, houve, pelo menos, três outros donos.
1:
Mas, meritíssimo, meu cliente jamais deixou a sua casa!
2:
Como não?, ele deixou a todos nós!
1:
Pelo contrário, meritíssimo. Aquela casa fora construída pelo seu
bisavô. Lá, sua avó nasceu, cresceu, casou-se e teve o pai de meu
cliente. Da mesma forma, o pai do meu cliente herdou sua casa, lá
cresceu, casou e também morou toda a sua vida e deixou de herança
para o meu cliente, portanto, o dono legal da propriedade.
2:
Mas, sr. advogado, ao deixá-la e a todos nós, como eu já afirmei
(e está bem claro, aqui, documentado nos autos), houve, pelo menos,
mais outros três donos depois do seu cliente.
1:
Por isso, devo reafirmar, que este não é o caso do meu cliente.
2:
Como não, sr. advogado?
1:
Ora, meritíssimo. Meu cliente também nesta casa nasceu, cresceu.
Criou lá uma grande rede de laços afetivos. Casou-se, duas vezes,
as suas duas mulheres moraram lá com ele. Todos, TODOS, os seus
quatro filhos lá moraram com o pai. Viveu, gozou, sofreu, morreu
naquela casa.
2:
Matou-se, o sr. quer dizer.
1:
A forma da morte não vem ao caso, meritíssimo.
2:
Como não vem ao caso, sr. advogado? Esta é a única prova que eu
preciso para indeferir a pedida do seu cliente.
1:
O que vem ao caso, meritíssimo, é que há trinta anos ninguém mora
mais naquela casa. Ninguém a comprou, ninguém a alugou, ninguém lá
VIVEU, como meu cliente lá vivera por mais de seis décadas, quase
cem, CEM, anos, sem jamais abandoná-la, meritíssimo, diferentemente
dos novos donos passados. Caso clássico, meritíssimo, de usucapião,
excelência, se não quisermos levar em conta a propriedade como
herança.
2:
Herança não poderia ser, jamais, porque outras famílias compraram
a casa. Não há sentido de que seu cliente herde a propriedade
alheia.
1:
É justamente por isso que requeremos, de v. ex., o usucapião do
imóvel.
2:
Um fantasma não pode ter propriedades, sr. advogado!
1:
Ora, por que não? Desconheço qualquer cláusula legal que proíba
meu cliente, ou qualquer outro fantasma, de ter a propriedade de um
imóvel. Negá-la seria negar a propriedade como um direito humano
básico.
2:
Seu cliente não é humano, sr. advogado.
1:
Data vênia, meritíssimo, como o v. ex. pode afirmar isso? Qual a
jurisprudência em que o sr. se baseia?
2:
O seu cliente, sr. advogado, não-pos-sui-cor-po!
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