quarta-feira, 7 de agosto de 2019

DESASSOMBRADO - Parte 1


1: Bom dia, meritíssimo, estou aqui hoje para pleitear, em nome de meu cliente, a propriedade legal da sua casa.
2: Desculpe, sr. advogado, mas não estou entendendo corretamente a pedida do seu cliente. Como é que ele deseja isso? Acredito que seja algo que ele não possa pleitear.
1: Por que não, meritíssimo?
2: A casa deixou de ser de seu cliente há muitos anos. Depois que ele a deixou, houve, pelo menos, três outros donos.
1: Mas, meritíssimo, meu cliente jamais deixou a sua casa!
2: Como não?, ele deixou a todos nós!
1: Pelo contrário, meritíssimo. Aquela casa fora construída pelo seu bisavô. Lá, sua avó nasceu, cresceu, casou-se e teve o pai de meu cliente. Da mesma forma, o pai do meu cliente herdou sua casa, lá cresceu, casou e também morou toda a sua vida e deixou de herança para o meu cliente, portanto, o dono legal da propriedade.
2: Mas, sr. advogado, ao deixá-la e a todos nós, como eu já afirmei (e está bem claro, aqui, documentado nos autos), houve, pelo menos, mais outros três donos depois do seu cliente.
1: Por isso, devo reafirmar, que este não é o caso do meu cliente.
2: Como não, sr. advogado?
1: Ora, meritíssimo. Meu cliente também nesta casa nasceu, cresceu. Criou lá uma grande rede de laços afetivos. Casou-se, duas vezes, as suas duas mulheres moraram lá com ele. Todos, TODOS, os seus quatro filhos lá moraram com o pai. Viveu, gozou, sofreu, morreu naquela casa.
2: Matou-se, o sr. quer dizer.
1: A forma da morte não vem ao caso, meritíssimo.
2: Como não vem ao caso, sr. advogado? Esta é a única prova que eu preciso para indeferir a pedida do seu cliente.
1: O que vem ao caso, meritíssimo, é que há trinta anos ninguém mora mais naquela casa. Ninguém a comprou, ninguém a alugou, ninguém lá VIVEU, como meu cliente lá vivera por mais de seis décadas, quase cem, CEM, anos, sem jamais abandoná-la, meritíssimo, diferentemente dos novos donos passados. Caso clássico, meritíssimo, de usucapião, excelência, se não quisermos levar em conta a propriedade como herança.
2: Herança não poderia ser, jamais, porque outras famílias compraram a casa. Não há sentido de que seu cliente herde a propriedade alheia.
1: É justamente por isso que requeremos, de v. ex., o usucapião do imóvel.
2: Um fantasma não pode ter propriedades, sr. advogado!
1: Ora, por que não? Desconheço qualquer cláusula legal que proíba meu cliente, ou qualquer outro fantasma, de ter a propriedade de um imóvel. Negá-la seria negar a propriedade como um direito humano básico.
2: Seu cliente não é humano, sr. advogado.
1: Data vênia, meritíssimo, como o v. ex. pode afirmar isso? Qual a jurisprudência em que o sr. se baseia?
2: O seu cliente, sr. advogado, não-pos-sui-cor-po!



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