1:
Página 37: “O que é um indivíduo? A sua definição é daquele
que tem a propriedade de si mesmo. Mas como pode um corpo possuir a
si mesmo? É logicamente impróprio, assim como, uma casa não pode
possuir a si mesma. Quem tem a propriedade do corpo é a alma, este
duplo de linguagem do corpo.
A
alma é as memórias. Ela que dá forma à consciência: só se pode
falar de si naquilo que se lembra de si. E o que são as memórias?
Sensações, emoções, sentimentos – tudo aquilo que agrupamos
como experiências de afeto com o mundo – que se conectam em forma
de redes neurais.” Aqui, novamente, uma explicação breve de como
se dá a formação destas redes de processos sinápticos. E vamos
para a página 38, três últimos parágrafos do texto: “As
cicatrizes, as rugas, as manchas e sinais do corpo, cada estria, cada
dor crônica na nossa biologia são mementos, ecos impregnados de
nossas experiências. Assim como a casa tem alas, paredes, cozinha,
banheiros, biblioteca, sala de estar; o corpo humano tem braços,
ossos, estômago, intestino, cérebro, coração. Cada tijolo numa
casa assombrada assemelha-se a cada célula de nosso organismo.
Portanto, a nossa matéria é a nossa primeira casa assombrada.
Da
mesma forma, o planeta inteiro é uma mansão assombrada, a
coletividade humana é a consciência geral de Gaia!
Desassombrar
um corpo é matá-lo. Separar uma alma de sua casa é matá-la. Uma
casa desassombrada é sem vida: ninguém lá sofreu, mas também
ninguém lá gozou! Se um indivíduo é proprietário de si mesmo, de
seu próprio corpo, quem mais seria o verdadeiro proprietário de uma
casa senão as suas assombrações?”
2:
[Segurando uma lágrima no olho esquerdo.] E onde o senhor quer
chegar com isso?
1:
Separar o meu cliente da casa seria matá-la.
2:
Uma casa não é um ser vivo para morrer, sr. advogado.
1:
Data vênia, excelência, uma casa assombrada É uma casa viva. Ela
tem memória, tem consciência. Da mesma forma, uma pessoa
desassombrada é um cadáver.
2:
A sua lógica é venenosa. O senhor está fazendo associações
impróprias.
1:
Impróprias não, excelência. Data máxima vênia, peticiono a v.
ex. que considere o meu cliente como proprietário da residência que
assombra da mesma forma que se considera uma Pessoa Física
proprietária de si mesma.
2:
Isso seria um absurdo! Neste caso, eu garantiria a uma casa os
direitos da “pessoa humana”.
1:
Mas, excelência, não é justamente esta a natureza da petição e o
argumento central do artigo da doutora: o ser humano, como
proprietário de si mesmo, nada mais é do que uma casa habitada por
uma assombração. Negar ao meu cliente o corpo que ora possui, mas
que não foi lhe dado por Deus, é matá-lo uma segunda vez! V. Ex.
não crê em Deus, meritíssimo?
2:
Sr. advogado, isso é desacato!
1:
Mas é um ponto válido na minha argumentação.
2:
De fato, como todo cidadão de bem, creio em Deus, mas o que isso vem
ao caso?
1:
Ora, todo filho de Deus tem como a sua primeira propriedade natural
no seu corpo. Mas não somos apenas corpo. A alma sobrevive à
experiência física e, sem poder dirigir-se a um final metafísico
adequado, aqui ficou presa. Mas, é assim porque Deus quer. Preso ao
novo corpo do qual é inseparável. Deus se encarregou de prender meu
cliente à residência a qual possui “laço de sangue”, assim
como prendeu a mim e ao senhor, meritíssimo, a esta “residência”
a que somos ligados por herança familiar.
2:
Ainda assim, mesmo que verossímil a argumentação, o corpo que Deus
nos dá é um direito natural inalienável, não precisamos de um
documento emitido pelo Estado para atestar a posse deste bem; ao
contrário de um direito natural à propriedade privada que é
constituída por homens, logo alienável sobre certas circunstâncias
(como a compra e venda). Só a burocracia estatal pode realizar, no
molde formal, as relações corporais entre pessoas físicas e
jurídicas. Repito, não precisamos de documentos para provar que
possuímos o nosso corpo!
Nenhum comentário:
Postar um comentário