quarta-feira, 7 de agosto de 2019

DESASSOMBRADO - Parte 4


1: Página 37: “O que é um indivíduo? A sua definição é daquele que tem a propriedade de si mesmo. Mas como pode um corpo possuir a si mesmo? É logicamente impróprio, assim como, uma casa não pode possuir a si mesma. Quem tem a propriedade do corpo é a alma, este duplo de linguagem do corpo.
A alma é as memórias. Ela que dá forma à consciência: só se pode falar de si naquilo que se lembra de si. E o que são as memórias? Sensações, emoções, sentimentos – tudo aquilo que agrupamos como experiências de afeto com o mundo – que se conectam em forma de redes neurais.” Aqui, novamente, uma explicação breve de como se dá a formação destas redes de processos sinápticos. E vamos para a página 38, três últimos parágrafos do texto: “As cicatrizes, as rugas, as manchas e sinais do corpo, cada estria, cada dor crônica na nossa biologia são mementos, ecos impregnados de nossas experiências. Assim como a casa tem alas, paredes, cozinha, banheiros, biblioteca, sala de estar; o corpo humano tem braços, ossos, estômago, intestino, cérebro, coração. Cada tijolo numa casa assombrada assemelha-se a cada célula de nosso organismo. Portanto, a nossa matéria é a nossa primeira casa assombrada.
Da mesma forma, o planeta inteiro é uma mansão assombrada, a coletividade humana é a consciência geral de Gaia!
Desassombrar um corpo é matá-lo. Separar uma alma de sua casa é matá-la. Uma casa desassombrada é sem vida: ninguém lá sofreu, mas também ninguém lá gozou! Se um indivíduo é proprietário de si mesmo, de seu próprio corpo, quem mais seria o verdadeiro proprietário de uma casa senão as suas assombrações?”
2: [Segurando uma lágrima no olho esquerdo.] E onde o senhor quer chegar com isso?
1: Separar o meu cliente da casa seria matá-la.
2: Uma casa não é um ser vivo para morrer, sr. advogado.
1: Data vênia, excelência, uma casa assombrada É uma casa viva. Ela tem memória, tem consciência. Da mesma forma, uma pessoa desassombrada é um cadáver.
2: A sua lógica é venenosa. O senhor está fazendo associações impróprias.
1: Impróprias não, excelência. Data máxima vênia, peticiono a v. ex. que considere o meu cliente como proprietário da residência que assombra da mesma forma que se considera uma Pessoa Física proprietária de si mesma.
2: Isso seria um absurdo! Neste caso, eu garantiria a uma casa os direitos da “pessoa humana”.
1: Mas, excelência, não é justamente esta a natureza da petição e o argumento central do artigo da doutora: o ser humano, como proprietário de si mesmo, nada mais é do que uma casa habitada por uma assombração. Negar ao meu cliente o corpo que ora possui, mas que não foi lhe dado por Deus, é matá-lo uma segunda vez! V. Ex. não crê em Deus, meritíssimo?
2: Sr. advogado, isso é desacato!
1: Mas é um ponto válido na minha argumentação.
2: De fato, como todo cidadão de bem, creio em Deus, mas o que isso vem ao caso?
1: Ora, todo filho de Deus tem como a sua primeira propriedade natural no seu corpo. Mas não somos apenas corpo. A alma sobrevive à experiência física e, sem poder dirigir-se a um final metafísico adequado, aqui ficou presa. Mas, é assim porque Deus quer. Preso ao novo corpo do qual é inseparável. Deus se encarregou de prender meu cliente à residência a qual possui “laço de sangue”, assim como prendeu a mim e ao senhor, meritíssimo, a esta “residência” a que somos ligados por herança familiar.
2: Ainda assim, mesmo que verossímil a argumentação, o corpo que Deus nos dá é um direito natural inalienável, não precisamos de um documento emitido pelo Estado para atestar a posse deste bem; ao contrário de um direito natural à propriedade privada que é constituída por homens, logo alienável sobre certas circunstâncias (como a compra e venda). Só a burocracia estatal pode realizar, no molde formal, as relações corporais entre pessoas físicas e jurídicas. Repito, não precisamos de documentos para provar que possuímos o nosso corpo!


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