sábado, 19 de dezembro de 2020

CANÇÃO MÍSTICA

                         Meu Amado, as montanhas.
                                                   João da Cruz

Minha Amada, o Vento.
Não te ires de mim, Tornado,
Tua fúria há derrubado
Tudo e te preciso dentro
Do meu ser enamorado.

O meu corpo, Flauta.
Vento, Amada, cante em mim
A tua música cauta
Na imprudência minha. Nauta
De teus reveses sem fim
Estou perdido pirata.

Te encontro em todas as Sinas.
Tu és o Sol, és o Tempo,
Luz sozinha das esquinas,
Guia das minhas retinas:
Minha Amada, o Vento.

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

MANHÃ

Nesta manhã
que te ofereço todas as manhãs
da minha vida
te vejo toda louçã
em sorrisos tortos
procurando saídas
das luzes de meu porto

Foi uma longa manhã
turbulenta de domingo
quando ainda que dormindo
te via com todo afã
a buscar buracos
de fugas do meu lado

Naquele dia terrível
aprendi uma boa lição
do teu amor sábio:
não vejas com o coração
quem some pela manhã

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

FÊNIX

Nas suaves linhas de teu litoral 
alça em voo 
        em canto 
    teu pássaro 
                          incendiando os céus 
                          nas belas curvas 
por teu encanto 
                           de pena em chamas 
             de pele em furor 
                                de carne em plumas 
      de bela em 
             cor

terça-feira, 13 de outubro de 2020

VINTE (EPOPEIA DA CONSCIÊNCIA DE UM ANO TRÁGICO)

                  CANTO I (Do Vírus)

É 20

e o concreto não foi derretido

ainda


obrigados que estamos

a trancar-nos em casa

os céus e as águas limparam-se

quase que instantaneamente


Mas nos ordenaram sujar

por dinheiro

fazer a maquinaria rodar

por dinheiro

o povo todo tem fome

por dinheiro


Neste tempo desgovernado

por “vírus e vermes”

desencontrado de sentido

é-nos negado o abraço

                      o aconchego

                      o afeto

                      o amor


Mas tanto dinheiro te comanda

ou a fome te ordena

e o concreto não foi ainda

                                      derretido


É 20,

acabaram-se as certezas do ser

e tantos e quantos se apegam

por enquanto

buscando algum sentido

na não-esfericidade bíblica do globo terrestre


É 20

e odiamos mais,

graças a Deus!

Tão bem que somos treinados e doutrinados

a acusar saberes de doutrinação

e a Odiar tudo que não nos foi profetizado


É 20,

tenho quase certeza.

Meu corpo dorme 15 horas por dia

para escapar desta vida desgovernada

por vermes e vírus


Tem tempestade de trovões

quando deveríamos estar isolados sem aconchego

                                                       sem afeto

                                                       sem abraço

                                                       sem amor


É 20,

tenho quase certeza

que morreremos

ou pelo vírus

ou pelos vermes

que nos aquartelam


Me falaram

no entanto

que é quase inútil se revoltar

e eu só tenho fúria e indignação


por desprezo

meu corpo dorme 15 horas por dia

para esconder-se da vida


E ainda

não foi derretido o concreto

tenho quase certeza


                  CANTO II (Dos Vermes)

Há fome pelos esgotos da vida

há mortos nas valas abertas

de caixões fechados

e, por enquanto, 

nem todos descansaremos ainda


As ruas deveriam estar vazias,

mas estão inchadas

como tumores purulentos

de pessoas que só usam as máscaras

do dia a dia


É 20,

e somos presididos

por uma faca e uma mamadeira peniana

(tanta vergonha mal cabem num planalto)


As pessoas deveriam estar indignadas

                                                furiosas

                                        desesperadas

Mas, mal há medo

    porque há fome


Qual certeza ainda temos

e compartilhamos?

Na segunda vinda de Cristo

onde o crucificaremos?


E este concreto que não derrete?

Nenhuma profecia mais

se fará presente?

Por que não se dissolve

meu ódio,

este vírus?


É 20,

e as epopeias se desmancharam

em transmissões ao vivo

porque não podem tomar a rua

e se moldarem à vida do povo


E, por isso, tenho quase certeza

que o concreto não se derreterá:

só as palavras dissolvem o real

só os gritos abalam os palácios

como Josué bêbado dançando revoltado

ao redor dos muros de Jericó


Não me castiguem!,

             o que foi que lhes prometi?


É 20,

e todos os épicos se transmitem

como virais

como uma subcelebridade da rede

bêbada na sua bacanal

entoando o zeitgeist da minha geração:

“foda-se a vida!”


Uma dezena de milhar de mortos

“e daí?”

É 20,

e somos comandados por facas e fascistas

e mentiras e mamadeiras

e vírus e vermes


E “nem todos libertaram-se ainda”

porque “as pessoas libertam-se em comunhão”


Donde vem os vírus

          que nos enganam

se não de um beco escuro

de um pântano da Virgínia?


É 20,

ainda

tenho quase certeza


Não estamos nos tateando nos escuros,

estamos apenas nos odiando

e transmitindo ao vivo

pelas redes sociais

porque dilaceramos todas as redes comunitárias

e nos petrificamos

em propagandas em modo lídio

de que somos ilhas


eu não acredito


não há nenhum fragmento

no asfalto

tanto ódio disperso

nas individualidades

que nos tornamos estéreis

e as paredes de concreto

continuam mais duras

que as nossas palavras


Nos ensinaram a crer no ódio

e odiamos tantas coisas

diferentes e várias e desiguais

que endeusamos os fariseus


É 20,

e ainda estamos a escolher a tortura correta

para a segunda vinda de Cristo


Não me cansem!,

             o que foi que lhes profetizei?


Jamais beijarei a mão

suja do sangue dos nossos filhos!


Durmo 15 horas por dia

e é 20 ainda!

Quantas horas terão o dia

para ser esquecido?


Meu corpo ainda não entendeu

                                 a falta de afeto

                                            do amor

                                            do abraço

                                            do aconchego


É 20,

ainda

é triste

quase certeza eu tenho

que nos perdemos

em alguma esquina do caminho

da humanidade

por causa de uma placa bonita

por causa de uma promessa vazia

por causa de uma negativa à vida


Minha geração nasceu errada:

nos ofereceram empacotado

o jogo da vida

e aceitamos

e acreditamos

que poderíamos Vencer


                  CANTO III (Da Festa do Mercado)

É 20

e o concerto do ódio ainda

não foi detido


Dez mil mortos no país

churrasquinho e jet ski

a fome come na periferia

setenta milhões de invisíveis

que o onipotente Mercado finalmente via

mastigando sonhos como cacos de vidro

bebendo vinho e injetando cloroquina

como no DOPS se engolia

                                              a tubaína

                                                 e daí?

                                      foda-se a vida!


                  CANTO IV (Do Templo Na Galileia)

É 20

e o Estado Armado sobe o morro para brincar

João Pedro

João Rocha

brincando subiram anjos


o Estado é daltônico,

mas sabe caçar bem


É 20

e o Estado ainda não ruiu

sob o peso de milhões de jovens joões

a sua dentadura não caiu

porque adora moer carne


Há quem só falou sob tortura

há quem só calou sobre tortura


É 20

e ainda negam os corpos

            negros

            negras

            negres

o Estado Armado é uma fábrica

de corpos adestrados

                amolecidos

                amedrontados

                entorpecidos

                fragilizados

                esquecidos

                domesticados


Quando subir a favela

                          favor

 não esquecer o fuzil

a máscara a bíblia a cloroquina

e a vela


Quando subir a torre do condomínio

                                       conduza

devagar não traga o vírus

bata continência nestes sacros

                                             domínios


Quando a marcha erguer o braço

ou atirar com os dedos

em sinal de oração

jamais se esqueça de embelezar

a entrada de todo morro

com a placa sisuda:

“O trabalho liberta,

Brasilien über alles!”


Quando as lágrimas descerem

lembrarás que não há país como este,

ama-o com fé e orgulho

ou o deixe


É 20

e a Justiça vendada

tem um olfato apurado miserável

de longe distingue bem

a massa cheirosa e o povo

e o Estado Armado e daltônico

comprou uma luneta

e agora fica

                      perversamente

                      pornograficamente

só na cabecinha

só na cabecinha


Sobre João Pedro

Sobre João Rocha

          Jesus

erguerá sua 

          Igreja?


É 20

e ainda não decidimos

quantas chibatadas

serão cobradas

para quem deu pão

aos flagelados da fome

quanto vinagre

será derramado

na boca de quem tem sede

de justiça


É 20

e eu não me esqueço

que o meu inimigo

tem todas as armas

e convenceu A MIM

que é imoral se revoltar


Como torres de flautas

vamos tocando dançando poetando

evitando

que o Céu caia


É 20

e o concreto de ódio ainda

não foi derretido


Nazaré não era mais

do que um cemitério

na Galileia


Nazaré não era mais

do que a bocada mais suja

de uma favela da periferia

O Gueto dos guetos

onde um sem teto

               sem terra

               sem templo

               sem pai

           nasceu preto

                       pobre

                       politizado


Mas é daltônico o Estado Armado

e a Justiça cega tem ótimo olfato


Foi dentro de casa

      brincando com os primos

Foi procurando pipa

      pra voar nas vielas

Sobre qual Pedro, sobre qual Rocha

será erguida a Igreja da favela?


a Igreja de quem tem fome de pão

                                   sede de justiça

                                   chibata na mão

                                   e o dia da ira

contra todos os fariseus

                         escribas

                         legionários

                         vendilhões


Nunca te agasalhei

nem te dei abrigo

mas enquanto os velhos morrerem

                    e os jovens trabalharem

o meu lucro engrandece o Senhor


Temos que vender o Brasil

e prender os adversários

pôr um general sem dentário

Em cada canto do gabinete


É 20,

porra!,

não faço milagre

mas sou o Messias

é para morrer trinta mil

patriotas do Brasil

conhecereis a minha verdade

e ela vos libertará

da consciência


Sem consciência, somos só corpos dóceis

imbecilizados

sem ira

irrevoltáveis

incapacitados

de quebrar o chão, derrubar o céu

fazer chover concreto


Não há amor onde há fome

não se acha justiça onde não se acha amor

eu tenho quase certeza

que todos dormem 15 horas por dia

para embrutecer a tristeza

cinco horas na cama

cinco horas no coletivo

cinco horas batendo o cartão


A epopeia foi esmagada pelo microvídeo

justo agora que ela poderia

ser revolucionária

infernizando Wall Street

castigando na praça os inimigos

                                 os traidores

com as mãos empapadas de nosso sangue

                                             com fúria e dor


Feliz 20

para a minha terra

suja de trevas

esta terra que se chama João Pedro

                                      João Rocha


Nós, “obituários” vivos dos dias presentes

sentimos nas costas

o sangue de nossos filhos

a fome de nossos irmãos

a tosse seca de nossas avós


                  CANTO V (A Canção Do Ferro)

Sejamos leves,

                           pelo Amor de deus!


No que adianta armar

                         alguém que não se revolta?


O poder é masturbatório,

mas se cansa de carregar desaparecidos

para cemitérios de perus

                           e paraquedistas

de botas de concreto

para as pontas das praias


O Estado Armado e de lunetas

                           enxerga bens

a Justiça vendada cheia de togas

                             cheira bens

mas no Templo do morro da Galileia

só se reza em cemitérios


Não haverá nada

além de fome e dinheiro

e queremos mais

         muito mais


Eis os heróis da democracia

      os cidadãos de bens

300 canalhas

e 1 fornalha

e 2 dezenas de milhar de mortos

nem aviões nem helicópteros de cocaína

carregaram tanta joalheria

                   tantos príncipes herdeiros

de monarquias extintas

                   tantos filhos pródigos

de um governo sem instinto

                   tantos influenciadores digitais

de notícias sem fatos

                   tanta filosofia invertida de um astrólogo sem estrela


E eu que durmo 15 horas por dia

de modo que o tempo não passa

pula de 3 em 3 dias?

já se aproxima a minha execução

mas não chegou meu julgamento

ainda

tenho quase certeza

nesta democracia elitista

que intubou Sócrates


No que adianta amar

                              alguém que não se revolta?


                  CANTO VI (Vislumbra-se O Herói)

É 20

e finalmente

estamos botando o fogo do inferno

no Céu e nos prédios


Outro de nós nos foi assassinado

pelo Estado Armado

com o joelho sufocado

como Abrão acariciando o próprio filho


Todos os nossos gigantes

                              gentis

sentirão o peso do teu coturno

                      na garganta

quem poderá respirar?


Somente quando

            as casas brancas

                              alaranjarem

            em chamas

                                           teremos

paz


Enterramos nossos vizinhos

                                   – sejam pacíficos

enterramos nossos amigos

                                   – sejam pacíficos

enterramos nossos heróis

                                   – sejam pacíficos

enterramos nossos irmãos

                                   – sejam pacíficos

enterramos nossos pais

                                   – sejam pacíficos

enterramos nossos filhos

                                   – sejam pacíficos


Só é possível ser pacífico

                                             no enterro

                                        do nosso inimigo


Eu vi

eu vi

o fogo de pentecostes descer

                               e queimar

                                                o asfalto

                                                o fascismo

                                             e a desesperança


Eu vi

eu vi

os militares protegerem

os fascistas

os amotinados do Ceará

                             cavalgando no planalto


Eu vi

eu vi

a marcha das tochas e das máscaras brancas

afogando-se em leite da intolerância


É uma manada

                         pequena

                         barulhenta

                         militarizada


É 20

e cento e quarenta e oito milhões

de seres humanos vos odeia

nem todos perceberam ainda

muitos têm fome

e onde há fome

           há medo

mas cento e quarenta e oito milhões

de seres humanos vos condena


Suas tochas

                    e suas cruzes em chamas

                    e suas máscaras fajutas

assustam a quem?


Eu vi

eu vi

o fogo de pentecostes descer

                               e queimar

                               e tremer

as mansões do asfalto

os corações dos supremacistas

as solidões dos desesperados


Quando o Nazareno voltar

será asfixiado

       crucificado pelos cassetetes

                             nos asfaltos


Crescemos atirados pelos elevadores da vida

sempre pro chão

sempre pro chão

                                pelos elevadores da vida

sempre estamos despencando


                  CANTO VII (Do Partido)

É 20

e quatro dezenas de milhar de mortos

                                            de famílias fragmentadas

                                            de almas perdidas

fazem arrotar de alegria fartar

                       de ruína

                                    os Véios e os seus robôs


de gripezinhas e fraquejadas

vão se erguendo vossos partidos!


Tu que veneras os nossos inimigos

                              vossos destinos

é a praça de Milão!


A PAX de Roma

não nos interessa


não há paz nos cemitérios

só silêncios


quem tolera

quem protege o opressor

pratica a chacina

limpando as mãos


Marx não sobe o Morro

porque de luta de classes

a favela sabe mais

que o doutor


                  CANTO VIII (Da Bomba)

Uma centena de milhar de mortos

minha cidade inteira assassinada

quase todas as cidades do Brasil

                                     assassinadas

uma centena de milhar de almas sonhos amores amigos famílias destinos 

destroçadas como por um míssil nuclear


    em Beirute

    um berço da humana gente

  uma bomba delinquente

          balançou as estruturas e fez chorar

até os barcos fenícios de cedro

até na Bahia enterrados

                      Fênix púrpura

          bomba racista


além dos Vírus, os Vermes


uma centena de milhar de mortos

é 20,

este é o novo normal

normal que o microvídeo flagra racistas

e os aplaude

o normal de sempre: branco

                                obeso

                                  básico

                                  babaca

o normal de sempre: rico de três

                                         de quatro gerações

                                         de heranças

                                         de capitanias hereditárias

                                         de burrice acumulada

                                         de diplomas comprados

                                         de empresas proprietários

   mantidas pelo trabalho de tantas

outras gentes

tudo que têm “trabalhou ou herdou?”


É 20,

diante de tudo isso

o concreto ficou ainda mais duro

o fogo não o derreteu

a fúria não o dissipou

a Fala não se fez Carne

e Ele, temendo a Cruz, não veio


É 20,

falamos da utopia do concreto

falamos da rebeldia das massas

falamos da autodeterminação dos povos

falamos até de poesia

falamos

falamos

falamos

obedecemos


o que adianta amar quem

                         não se revolta?


quem abraçará alguém

                            que não se conhece?


esta é a vontade do Ferro:

só na cabecinha! e Beirute caiu;

esta é a vontade do Ferro:

só na cabecinha! e subiram de novo o Morro;

esta é a vontade do Ferro:

só na cabecinha que pedalada é mais grave que genocídio


esta é a vontade do Ferro

mas

não é a vontade do Fogo


pentecostes descerá

todo o concreto deixará de ser líquido

tudo voltará a ter certeza

veremos as coisas como são

o concreto pelo concreto

então será vencido


mas quem tem fome

                 tem medo

quem tem medo não se revolta

quem não se revolta

          não merece amor

?


É 20,

bom dia mundo novo

que não mais se alimenta apenas

da carne mais escura

mas de todo pus que sai da boca do Senhor


É 20,

todo o teu fogo já morreu!


                  CANTO IX (A Mãe Do Mundo)

O ano acabou

ou está nos acabando

os dias se atropelam feito

                                   estradas

                  tortuosas


e nos perdemos nas esquinas

                                  dos nadas


o show acabou

não há mais espetáculo para processar

queimamos tudo

                   tudo

                   toda a mata

                   toda criança

                   todos os nossos esforços

em      

                                                                            vão


sai a onça, o lobo, o macaco,

o tamanduá não nos salvará

             da enchente de chamas,

nem o tatu, avô nosso,

nem o jacaré, nem o boto, nem as grandes cobras d’água,

sai o carcará, o gavião, o saci, a coruja

entra toda a boiada

         toda a árvore sai

         toda a soja

                 o milho

                 o arroz saem

exportation → plantation → fornication


tantas vidas

vêm

                                                                            vão


não sobrou nada para alguém odiar

a não ser a humanidade

não odiamos mais as guerras

                              as fomes

                              a intolerância

                              a exploração

só odiamos as gentes

oh tempos

os satanases

                   em que nos tornamos

idolatrando nas Igrejas


caras de pau!

mamadeiras de pau

santas de pau

extraído ilegal

milhões vos recheiam

da prata dos cofres do povo


quinze vezes cinco é teu dízimo

quando todas as mães pretas

não tiverem mais pelo quê chorar

só assim                           então

sereis feliz

  bem feliz


Magnata do ódio!

a ignomínia é o teu tesouro,

minhas lágrimas, o teu gozo;

minha ira, teu terror


Magnata do ódio!

            todo óleo

que nos roubaste

 será o combustível

       de tua prisão


Magnata do ódio!

pode esperar sentado no teu púlpito

nós vamos lá te buscar

e toda lágrima inocente

cobrará o seu sal


Magnata do ódio!

pode avisar a tua claque

hoje podeis ter ainda o fuzil

                                               Mas um dia as mães pretas

                                               não salgarão o teu feijão

                                               com a suavidade de suas lágrimas

                                               mas com o peso do chumbo

                                               que derramaste nos nossos filhos


Magnata do ódio!

                             pode avisar

hoje, nos banha

no frio da madrugada

e rouba nossos lençóis,

amanhã, frio serás tu


Magnata do ódio!

                             pode se preparar

hoje, quem ri no banquete,

se engasgará no nosso festim


Magnata do ódio!

o que irás dizer

quando batermos à porta?

“não lá pertencemos”?

a Terra toda é nossa

                            somos a humanidade


Magnata do ódio!

para onde fugirás,

onde não encontrará o teu inimigo?

                                  o povo humano


                  CANTO X (Ódio)

É 20

Bayeux e Patos

Sapé e Santa Rita

Souza e Cabedelo e Cajazeira

Araçatuba, Ferraz de Vasconcelos, Santa Bárbara do Oeste, Nova Friburgo, Nossa Senhora do Socorro, Barra Mansa, Teresópolis, Araguaína, Guarapuava, Ibirité, Jaraguá do Sul, São José de Ribamar, Itapecerica da Serra, Francisco Morato, Linhares, Mesquita, Itu, Palhoça, Valparaíso de Goiás, Bragança Paulista, Timon, Pindamonhangaba, Poços de Caldas, Caxias, Maricá, Nilópolis, Teixeira de Freitas, São Caetano do Sul, Ilhéus

cada alma dessas terras está morta

quando eu me olho no espelho

eu sei

eu faço parte da multidão de assassinados

pelo individualismo barato

pelo prazer de poucos

pelo dinheiro de menos


E a cada mil pessoas numa rua

uma tomba

com os pulmões comidos


É 20

e me tiraram o direito divino de odiar

para não nos igualarmos


Preciso odiar

os fascistas, racistas, machistas, sexistas,

os teocratas, tecnocratas, plutocratas, escravocratas

                                            as pratas, os hipócritas

e com as mais puras fúrias cristãs

com uma corda feito chibata

exercer minha dádiva sagrada

                           de punir-vos


Não me tirem o ódio santo!


Ai de vós, Senhores, se cairdes

em minhas mãos!

A vossa sacra misericórdia está guardada

igual ao que o burguês puritano Cromwell

guardou ao direito divino e hereditário.


Senhores de toda a Terra:

eu não vos amo;

nem vou ignorá-los.

A cobrança será feita,

estou aprendendo a contar

complexo feito banqueiro.


A cada lar tomado

a cada roçado queimado

a cada templo arrasado

é um grão a mais

em vossa campa.


Não temos medo

mas não somos burros

tudo o que nos resta além de sofrer

                                            é lutar


Não me abandonem no ódio solitário!


Gostaria

e muito

que cada um que comemora

centenas de milhares de mortos

viesse à minha mão

como a um tribunal de crimes

de lesa-humanidade

a vossa misericórdia está guardada


Não me calei.


É 20

apenas

todo o concreto parecia rachar

todo o asfalto, derreter

todo a poluição, sumir

no entanto

a única coisa que rachou, derreteu, sumiu

foi minha esperança

nos homens.


As mulheres ainda hão de me salvar.


Não me deixem só remoendo tanto ódio!


Não caminhei

não me purifiquei

não fiquei sabendo

tantos de nós se perderam

ou o pulmão

ou o juízo

ou o coração

                     foram completamente comprometidos

                                      plenamente


Não há santuário onde se esconder

não há abraço onde se encontrar

não há mais humanidade


Eis pois o nosso projeto

pós-20:

vamos inventar a humanidade


o que houve aqui não vogou:

não veio a enchente, ou as chamas,

ou o lobo ou o jaguar;

veio o que sempre vem nos matar:

a coroa


uma humanidade sem coroas

                            nem caras

de pessoas livres

porque não passam necessidades

de pessoas livres

porque mandam em si mesmas

e livres de mandar em ninguém

porque são o que nasceram para ser

e não precisam agir como tal


Não me lembrem de tanto ódio;

esse ódio é miasma amargo!


Eu quase me perdi

pois não tinha a ti

para guiar-me

        grato por ouvir-me

        grato por ler-me

        grato por amar-me


talvez um dia

           queride

           nos encontraremos numa esquina

           lembrarás de minhas palavras

           “20 foi fel, foi foda ficar falando

           contigo, te ouvindo.”

talvez tu me abraces

talvez me elogiando

talvez me agradecendo

           porque eu não desisti

talvez seja inocência tua

                   Nós não desistimos


Sinta-se beijade por mim

eu te amo

não importam as circunstâncias

nós vencemos

desmascaramos a mentira dos Senhores:

só a mão humana

só as nossas mãos

produzem o mundo

só elas têm valor

e um dia seremos livres


e não haverá espaço nem tempo para odiar

os hipócritas,

os fascistas e os plutocratas

os machistas e os teocratas

os tecnocratas e os sexistas

os escravocratas e os racistas

as pratas


Nesta era irás me dizer

          tua ira foi justa

nunca fora ódio

sempre foi e

sempre será

                          Humanismo


Se eu não me perdi

amade

é que vivo esta Utopia

é onde sempre estou

porque lá não posso chegar

                            só


                            se eu não me perdi,

                            não me arrependo.


É 20

e nos reveremos.


                  CANTO XI (O Lucro)

Era 20

e muita gente nem percebeu

que se tem lucro

           tem lado

e não é o meu


O meu é o lado do trabalho

e das mãos limpas


Quem lacra lucra sim

nessa higienização catártica

de todas as opressões

no marketing mais colorido

da festa da liberdade

para quem pode pagar


Vós que esquecestes todas as dores

não andais comigo


Começamos nesta festa geral

do foda-se a vida

e terminamos no Réveillon

do “me intuba, porra!”


Esta é a minha geração

                                        Tubaína

uma já velha geração de doutrina

na promessa de prazeres

que crescemos viciados

nas pílulas do imediato


Dinheiro é o único prazer

                  o único bem

                  a única certeza

deste mundo

                  e ele tem lado

                  e não é o meu


Vós que esquecestes a vida

não andais comigo


Era 20,

e já reivindiquei

o meu direito de voltar a odiar


quero odiar de modo puro

todos os opressores

carregar comigo esta mazela dolorosa

até que não haja

mais nenhum

oprimido sobre a Terra


Só assim, então, poderei perdoar

primeiramente a mim


Mas, enquanto eu não extirpar do humano

o desumano

que tipo de olhos terei

para os nossos filhos


Nós, da pior geração,

a geração que renegou a Utopia

não a que a combateu

não a que (acha) que venceu

nós somos o estágio final

da razão porca


O lucro nunca será nosso

contentem-se com a doutrina do conta-gotas

mas não seremos salvos


O lucro não perdoa

pois é divino

dez mil cairão à tua direita

mas o lucro não será atingido


Festas masturbatórias

em praias turísticas

tornou-se impossível

para o dono

        a dona do púlpito

em seu bacanal mais lúcido

não fuzilar o próprio

                     marido-filho-genro

metralhado na virilha

para desentocar dos rabos

o lucro de merda cheia


Por que eu não te parei quando podia?

Por que eu não te traí quando queria?

Ah, vida, tu não me abandonaste

e eu quase te esqueci


                  CANTO XII (A Vida)

Foste minha parceira

Era 20,

mas estavas aqui

linda rameira

eu, impotente despossuído,

foste gentil com minha fraqueza

                   com minha franqueza

foste fiel


Derramei sobre ti a poesia mais doce

e as palavras mais feias

delas, deste fé.


Jamais me perdoarás,

porque não perdoas,

                   tratoras,

e eu me agarro, desesperado,

nos teus rastros


Eu me fiz de rogado

                de esquecido

                de desesperado

                de adormecido

e tu vieste como uma ladra na noite

coroada com a Estrela de Belém

de ti milhões foram ceifados,

mas tu não me abandonaste!


Então, por que eu?

Por que me escolheste para ficar?

sei que não foi pelo meu canto

                                que é rouco

pela minha força

                                que é pouco

pelas minhas falas

                                que é louco


A tu, vida, só um paradigma,

só uma variável, importa:

                                           a sorte

deste-me o rouco o pouco o louco

                             mas não a morte

e me obrigas,

como humano,

a observar e a cantar a humana gente


Por isso devo odiar a opressão

              devo resgatar em mim

         urgente

essa semente

essa fagulha íntima de fósforo e sal

devo lutar com olhos e dentes

com meu canto minha voz minhas mãos

com todo o meu corpo

com todo o meu ardor

pelo que há de mais humano em mim:

vê o que há de mais humano em nós


Tu me amas?

Como amar alguém que não se revolta?


Mas quem tem fome

                  tem medo

        quem tem medo, não ama

                  sem Utopia não há Rebeldia


É fácil pregar a depravação humana

apontar por todos os lados a decadência

ralhar pela moral

identificar o vil

desde que se dê de ombros

se decante a não solução

se pregue foguetórios quânticos

da transmutação da consciência

em que tudo se faz com o poder da mente

do pensamento positivo

mas sem mãos, comunhão, mutirão

       sem gente


É fácil pregar a cura da devassidão

                                                               solitária

é fácil pregar a salvação só no meu deus

e crucificar todo nazareno

que ande pelas ruas


É fácil ser salvo

quando só se vê nos outros a perdição


No meu outro só vejo a mim

só ele pode me salvar


E tu, vida? Me darás uma chance?


Me perdoarás?


E tu vida, serás complacente comigo?

Por favor, não.

Seja vida, seja dura, seja sempre.


Há duas coisas que prezas mais do que tudo,

Vida:

a sorte e a luta

se me doaste a primeira

te entrego a segunda


Não me perdoes, mas não me massacre

sou tão frágil

sou só humano


20,

Quero me despedir de ti

ao contrário do que parece

não foste assim tão mau

maus são os homens


Ofereceste soluções

ofereceste perspectiva

ofereceste resposta

ofereceste até mesmo revolta

e preferimos festas


Oh zeitgeist da minha era!

Nós, a pior geração,

gerada pela doutrina da não-Utopia

            pela doutrina da não-dor

                                  da não-luta

estamos formando a geração

                                  da não-solução


Tudo individualizado

         compartimentalizado

         identitarizado

e, assim, mais alienado,

mais enfeitiçado de paetês

que o lucro lacrado pode comprar

mais precioso

que o contato humano


este não se perdeu por um vírus

mas por uma forma

              uma técnica

que separa do humano

o conteúdo de humanidade


neste sonho louco

que tu, 20, quebraste

da máquina que produz sem mão humana

do conceito-forma

sem a solução do real no sujeito

nesta ideia louca de que lucro se reproduz

que derrubar

que queimar

é mais produtivo que viver


Fazem-se cálculos de banqueiros:

de pé esta árvore vale mil;

derrubada, cem,

salvem-se as árvores!


Mas quem salvará meu lucro?


Cem no meu bolso vale mais

que mil no bolso de milhões.

Quem salva a árvore,

           salva meu lucro?


Só quem sabe o lucro planeja

                       o mundo.

Esta é a sua teleologia.


O deus-lucro é onipotente e venceu

a ti, 20,

mesmo a ti que inventaste

o tornado bomba

tu que trouxeste no teu início

a praga dos gafanhotos

e em teu final a conjunção 

dos dois grandes deuses

nos céus que se cruzam


Nenhum Nazareno teu se salvou,

fomos iníquos!

A culpa foi tua?

Fomos imorais!

A culpa foi tua?

Fomos mesquinhos!

A culpa foi tua?

Fomos fracos!

A culpa foi tua?


Quem ferveu as águas,

escureceu o céu,

arrancou o verde,

destruiu habitats,

espalhou mentiras,

elegeu vermes?

Foste tu?


Revelas-te na cara dura do humano

o que é esta humanidade.


E, 

por um momento,

breve que seja, 

                         foste Épico!


E nós te transmitimos em virais.

Nós é que te traímos, 20.

Eras apenas o nosso espelho.


O concreto não derreteu

porque nós, de tão líquidos,

nos negamos de nos refazer.


Esta é a nossa vitória.

Nós te vencemos, 20,

tu nos prometeste fazer o teu pior

para que fôssemos melhores


Te vencemos 20,

a humanidade está mais degradante

do que nunca,

mas, te resta,

nesta míngua de lucros,

o eterno juros de que nos fizeste

nos enxergar a nós mesmos.


Nós, 20, nós.


15/04 – 04/05 – 20/05 – 29/05 – 01/06 – 02/07 – 08/08 – 04/10 – 11/12 – 31/12/2020