quinta-feira, 28 de novembro de 2019

SOB A LUZ

Mergulhe sob meus lábios
para que eu nunca mais venha à tona
suma comigo
para que eu nunca mais tenha terra

Navegue em mim
                                perca-se
                                peque-se
teu corpo nave 
no meu mar de mim
                      de desejos e delírios

                                Perca-se

todo pecado é sombra do que ficou escondido
Mergulhe sob meus lábios
para que eu nunca mais tenha trevas

Sob a luz, tudo é puro
                  tudo é preciso
                  tudo é vivo

Sob a luz

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

NECROPODERES

Eles vão nos matar 
se não fizermos nada
Eles vão nos matar 
se fizermos algo
Eles vão nos matar

Mataram e matarão 
nossos índios
nossos guerreiros
Eles nos matarão a todos
para gozarem de seus necropoderes

Eles nos matarão
para amedrontar os vivos
Eles nos matarão 
para acorrentar os vivos
Eles nos matarão

Mataram e matarão
nossos quilombolas
nossas lideranças
sequestraram e estruparam 
para gozarem de seus necropoderes

Eles nos matar vão
em nome de Deus
Eles nos matar vão
em nome do lucro
Eles nos matam em vão

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

LIBERDADE NÃO ESTÁ NO MERCADO

Liberdade não é pagada
Apagada mercantilizada 
Não é precificada contabilizada Argumentada ou ignorada  

Liberdade é tomada
Conquistada enlutada lutada
Armada amada almada

Liberdade não é pagável
Questionável negociável

Liberdade só é quando palpável

domingo, 29 de setembro de 2019

MAIS UM DOS ESQUECIDOS

não mergulhe comigo nos
                                                    abismos
                                               da tristeza
bem além destes caminhos
                                               de solidão
                                                 e incertezas

nunca se jogue nas minhas claras
                                                    profundezas
nem queira explorar de mim
                                               as belezas

à meia-noite estarei só

teu corpo, amor, ali deitado,
mas não estaremos perdidos
depois de desencontrados

não te carregarei por onde vou
não te deixarei mais minhas palavras
nem culpas pelo que não houve

quando deslizar por estes infernos
                                            estarei só
como mais um dos esquecidos
                            dos caídos
                                    perdidos
                                    malditos
da jangada
do barqueiro

sábado, 28 de setembro de 2019

FUZIL DA POESIA

Voltamos a um tempo de fuzilar toda poesia

Neste tempo, para quê falar de sol
                                                   de manhãs
                                                   de adultérios?

Meninas são fuziladas pelo Estado

Neste tempo, para quê falar de festas
                                                   de danças
                                                   de bebidas?

Meninas são fuziladas pelo Estado

Neste tempo, para quê falar de olhos
                                                   de beijos
                                                   de abraços
                                                   de paixão?

Meninas são fuziladas pelo Estado

Neste tempo em que as armas são
                                                  os filhos
                                                  prediletos
                                                  de Mamon

Estamos, diariamente, fuzilando meninas

Ou ressuscitamos a poesia do fuzil
                                                  de amor e
                                                  de luta

Ou continuaremos, por omissão,
                                   fuzilando meninas
                                   em nome do Estado

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

PRECISO AFOGAR ESSA PAIXÃO

Preciso afogar essa paixão
                         ou em lágrimas
                         ou em sangue
                         ou em suor e saliva

Preciso me perder do meu desejo
                        e jamais encontrá-lo
                                 nas tuas esquinas
                                 nas tuas coxas
                                 nas memórias minhas

Preciso me abandonar do teu corpo
                                fugir de meus suplícios
                                         de minhas malícias
                                         de teus indícios

Preciso afogar-me de ti
                     ou em ti
                               por mim
                        por nós
                 fugir
                       de tua voz
                 abandonar
                              os nus lençóis
                 prender
                     o meu desejo

Preciso afundar-me dessa paixão
                           sempre

sábado, 21 de setembro de 2019

QUANDO VOLTAR PARA CASA

quando você voltar pra casa
não precisa fazer silêncio
                      estarei dormindo

quando você voltar pra casa
não precisa esconder teus cheiros
                      apagar a luz
                      desviar dos móveis
                      estarei dormindo

não precisa se esconder
nem me contar fantasias
não precisa nem me ver
                     estarei dormindo

quando você voltar pra casa
apenas deite-se                    ao meu lado

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

MOFINO

nesta manhã, a morte me visitou
velha estranha e faminta amiga
no seu jogo eterno de se despedir

nesta tarde, eu me corto
procurando por uma rota reta
encho-me de cicatrizes tortas

nesta noite, dormirei com amante misteriosa
cujos segredos só se mostram no silêncio
e em meus medos fará amarga morada

amanhã, a maldita não me procurará
deixando-me nesta modorrenta monotonia
de procurá-la no temor de me descobrir

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

IMPULSO

resistir?

é para derrotados!
tu já me visse de joelhos?

só estou tomando impulso
                                  impulso
                 tomando
      estou

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

EU TE DEIXEI, SIM

Eu te deixei sim
Se não consegues amar
De novo não é por mim
Porém porquê tu és babaca

Eu te deixei sim
Fiz-me ser livre e feliz
Amores se vão enfim
Contigo, é porquê és babaca

Eu te deixei sim
Vou amando muito a muitos
Se negas ouvir assim
Meu nome é porquê és babaca

Eu te deixei sim
Se não sabes ser sozinho
Que tenho eu deste teu fim?
Tens culpa porquê és babaca

SETEMBRO

Descendo montanha russa com meus [demônios
Te vi lá
             embaixo

Posso parecer frágil
Mas é só Setembro
            eu aguento

Se a dor dos teus pulsos
não te deixar erguer
Me agarro contigo

Tomando amargo chá com meus demônios
Te vi lá
             afogando

Posso parecer ébrio
Mas é só Setembro
                  sempre aguento

É apenas fel das mesmas manhãs mortas
é apenas o teu Setembro
             a gente aguenta
                                          juntos

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

DESPEDAÇADO

Sem forças eu me parto

Não há qualquer parte minha nas partes [sobrantes
Não há qualquer sobra para onde parto

Partido fraco fico

Arrisco meu pouco por toda a parte
Desiludido em tudo por onde fico

Se soçobro ou desanimo
se sou repasto ou desalinho
Sobro em pedaços dos desamigos

Sem forças me refaço
Mesmo a cada caco que tenho achado pelo [caminho

Sem forças me reparto
É o que vês aí distribuído
Nesses versos em descaminho
Nesses carinhos bem despedaçados

VEJO FLORES

Quando eu vejo flores
às vezes fico esquecido
pensando lesos amores
há muito adormecidos

Enquanto vejo flores
fico andando distraído
meu peito tem morrido
em ilusões anteriores

Quando vejo teus olhos
fico apenas partido
todas as pétalas que desfolho
foram os teus sorrisos

domingo, 1 de setembro de 2019

SONETO

Não poderá dizer que sabe a vida:
Quem não provou o sabor da macambira
Ou o bruto fruto duma dura lida
          Sem conhecer da faca que bem fira
          Sem entender a luta que defina
          Sem suar a labuta que transpira
Quem de verdade vive nesta sina
De continuar sempre em mesma trilha
Do cansaço que nunca que termina
          Quem jamais congregou duma partilha
          Nem pode imaginar a dor infinda
          De perder a presença duma filha
Só quem pelejou pode ver ainda
Com visão limpa como a vida é linda!

sábado, 31 de agosto de 2019

A LIBERDADE É GRATUITA

É gratuita a Liberdade
Porém dinheiro é prisão
As águas o ar a amizade
As matas têm gratuidade,
Mas Mercadoria, não

Vende o corpo por salário
Pra poder comprar a vida
Este método arbitrário
É cruel e autoritário,
Mas Mercado é sem saída

O medo nos paralisa
Na ausência de consciência
Trabalho nos humaniza,
Mas o Mercado escraviza
Comprando a nossa vivência

A gente só muda o mundo
Quando se transforma a gente
Não se vê porque profundo,
Mas o Mercado é, no fundo,
Gaiola de aço pra mente

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

SAMBA-SONETO

Não vou pedir pra você ficar
Na estrada é melhor de caminhar
No coração a gente não manda
Inda mais quando o passo é demanda
E a rua está sempre a nos chamar

O teu rosto viu a cor da brisa
Reflita no azul que não se pisa
O querer de voar te comanda
Não tem rastro quem veloz se manda
Nem vestígio deixa na camisa

Só é pura a pista quando se anda
Mas é vil o ferro da gaiola
E cruel ter ternura tão branda.

Te dou amor, mas não peço esmola!

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

MARGARIDAS

A estrada nos traz feridas
Mas faz mudar nossas vidas.
Marcham muitas flores e anjas:
Quem nasce pra ser laranjas
Jamais será Margaridas!

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

CONTINENTE

Vou maratonar por teus morros e trilhas
Tocar pelos teus montes e matas
Errar por tuas praias e tuas águas
Navegar nu por teus límpidos rios

Por teus vales e depressões paradisíacos
Percorro portos e estradas tão seguras
Viajo nas tuas imperfeições maduras
E pelos teus magníficos precipícios

E ao saciar-me de teu continente
Peregrino fugirei para outras partes
Esquecer-me triste noutras artes
Até encontrar-me de volta feito penitente

SONETO

E todo o teu poder virará pó
D'ouro se desmanchando no chão!
Tens muito dele, mas lutarás só!
     Fardados fuzis por ti marcharão;
     Narrativas da mídia as consciências
     Como mercadorias venderão;
Os doutores da Igreja e das ciências,
E as frias leis do Estado são por ti,
Pois possuis toda a força e violências.
     Findará a paciência dos daqui,
     Cansados de apanhar, da fome ingrata,
     Vender trabalho sem jamais sorrir.
Verás um dia o Morro igual cascata
Quando a Terra em resíduo for tornada.

DE MÁRTIRES E TIGRES

Socialismo ou barbárie
Do Fascismo. Quando a crise
Embrutecer, nos avise:
Não seremos vossos mártires,
Pois saberemos ser tigres!

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

DESASSOMBRADO - Parte 5 - Final


1: Como não, excelência? Se toda a questão aqui é que meu cliente perdera o CPF, logo, o título de propriedade de si mesmo depois de um processo burocrático que se dá início com a emissão do atestado de óbito! É o Estado que comprova que nascemos, com o registro, assim como antes, a Igreja comprovava com a documentação batismal. O Estado prova que estamos vivos com o CPF e que somos quem somos. Lembremos, meritíssimo, que não é o RG que parece conosco, mas nós é que somos idênticos a ele.
2: Mas o Estado já emitiu o atestado que seu cliente morrera há mais de trinta anos!
1: No entanto, o que meu cliente exige é que se declare, que se reconheça, não que ele morreu, muito menos que nasceu, mas a sua qualidade de pós-vivo!
2: Isto é um absurdo, sr. advogado!
1: Como absurdo, excelência?, meu cliente está pós-vivo bem na sua frente!
2: A bem da verdade, eu “o” vejo, ainda que translúcido.
1: E como das provas de sua ligação, por assim dizer, “telúrica” com o seu patrimônio, fez-se mister transportarmos alguns tijolos do porão onde atentou contra a sua propriedade primeira.
2: Realmente elucidativo neste mister.
1: O mister maior, no entanto, excelentíssimo míster (perdoe-me o chiste) [ambos sorriem satisfeitos do agradável gracejo], é, esta face atormentada aqui, carregada por algumas “células” de sua grande angústia, não sensibiliza v. ex. para o seu caso? Veja tanto sofrimento (eterno, eterno devo relembrar sempre, porquanto o imóvel esteja “de-pé”) sem fim numa casa abandonada (e para sempre abandonada, não me escuso em dizer, porquanto o meu cliente esteja “aqui”)? Há uma correlação inexorável presentificada. Ou, perdoe-me o tom de ultimato, magistrado, mas, ou bem se reconhece o meu cliente como o pós-vivo-consciência de uma propriedade privada física, ou demole-se a casa e “mata-se” a ambos.
2: É muito, mas muito mesmo no que pensar mesmo. Antes que eu decida, porém, o seu cliente gostaria de se manifestar ao juízo sobre o seu caso?
3: AaaaaaaaaAAAAAAaaaaaaAAAAAAAaaaaH!!!!
1: Deveras eloquente, deveras!
2: O sr. me deixa numa encruzilhada: se eu indefiro a sua pedida, nego ao seu cliente o direito à sua propriedade privada; se defiro, concedo a uma casa o direito a ser proprietária de si mesma, portanto um indivíduo. De qualquer sorte, estarei fragmentando os alicerces da nossa sociedade que é a relação contratual entre os corpos. O que mais me assusta é que esta sua doutora em linguística sobrenatural tenha criado o direito fantasmagórico!
3: AaaaaaaaaAAAAAAaaaaaaAAAAAAAaaaaH!!!!

DESASSOMBRADO - Parte 4


1: Página 37: “O que é um indivíduo? A sua definição é daquele que tem a propriedade de si mesmo. Mas como pode um corpo possuir a si mesmo? É logicamente impróprio, assim como, uma casa não pode possuir a si mesma. Quem tem a propriedade do corpo é a alma, este duplo de linguagem do corpo.
A alma é as memórias. Ela que dá forma à consciência: só se pode falar de si naquilo que se lembra de si. E o que são as memórias? Sensações, emoções, sentimentos – tudo aquilo que agrupamos como experiências de afeto com o mundo – que se conectam em forma de redes neurais.” Aqui, novamente, uma explicação breve de como se dá a formação destas redes de processos sinápticos. E vamos para a página 38, três últimos parágrafos do texto: “As cicatrizes, as rugas, as manchas e sinais do corpo, cada estria, cada dor crônica na nossa biologia são mementos, ecos impregnados de nossas experiências. Assim como a casa tem alas, paredes, cozinha, banheiros, biblioteca, sala de estar; o corpo humano tem braços, ossos, estômago, intestino, cérebro, coração. Cada tijolo numa casa assombrada assemelha-se a cada célula de nosso organismo. Portanto, a nossa matéria é a nossa primeira casa assombrada.
Da mesma forma, o planeta inteiro é uma mansão assombrada, a coletividade humana é a consciência geral de Gaia!
Desassombrar um corpo é matá-lo. Separar uma alma de sua casa é matá-la. Uma casa desassombrada é sem vida: ninguém lá sofreu, mas também ninguém lá gozou! Se um indivíduo é proprietário de si mesmo, de seu próprio corpo, quem mais seria o verdadeiro proprietário de uma casa senão as suas assombrações?”
2: [Segurando uma lágrima no olho esquerdo.] E onde o senhor quer chegar com isso?
1: Separar o meu cliente da casa seria matá-la.
2: Uma casa não é um ser vivo para morrer, sr. advogado.
1: Data vênia, excelência, uma casa assombrada É uma casa viva. Ela tem memória, tem consciência. Da mesma forma, uma pessoa desassombrada é um cadáver.
2: A sua lógica é venenosa. O senhor está fazendo associações impróprias.
1: Impróprias não, excelência. Data máxima vênia, peticiono a v. ex. que considere o meu cliente como proprietário da residência que assombra da mesma forma que se considera uma Pessoa Física proprietária de si mesma.
2: Isso seria um absurdo! Neste caso, eu garantiria a uma casa os direitos da “pessoa humana”.
1: Mas, excelência, não é justamente esta a natureza da petição e o argumento central do artigo da doutora: o ser humano, como proprietário de si mesmo, nada mais é do que uma casa habitada por uma assombração. Negar ao meu cliente o corpo que ora possui, mas que não foi lhe dado por Deus, é matá-lo uma segunda vez! V. Ex. não crê em Deus, meritíssimo?
2: Sr. advogado, isso é desacato!
1: Mas é um ponto válido na minha argumentação.
2: De fato, como todo cidadão de bem, creio em Deus, mas o que isso vem ao caso?
1: Ora, todo filho de Deus tem como a sua primeira propriedade natural no seu corpo. Mas não somos apenas corpo. A alma sobrevive à experiência física e, sem poder dirigir-se a um final metafísico adequado, aqui ficou presa. Mas, é assim porque Deus quer. Preso ao novo corpo do qual é inseparável. Deus se encarregou de prender meu cliente à residência a qual possui “laço de sangue”, assim como prendeu a mim e ao senhor, meritíssimo, a esta “residência” a que somos ligados por herança familiar.
2: Ainda assim, mesmo que verossímil a argumentação, o corpo que Deus nos dá é um direito natural inalienável, não precisamos de um documento emitido pelo Estado para atestar a posse deste bem; ao contrário de um direito natural à propriedade privada que é constituída por homens, logo alienável sobre certas circunstâncias (como a compra e venda). Só a burocracia estatal pode realizar, no molde formal, as relações corporais entre pessoas físicas e jurídicas. Repito, não precisamos de documentos para provar que possuímos o nosso corpo!


DESASSOMBRADO - Parte 3


2: Ainda que seja, é O Estado: a fonte das leis e dos documentos. O deus jurídico! O espírito santo do direito!
1: E o que o Estado pretende fazer com o imóvel do meu cliente? Ninguém lá vive, ninguém quer lá viver. Deixe para os mortos, então!
2: Os mortos? Qual outro pleiteia a propriedade além de seu cliente?
1: De acordo com meu cliente, estão todos lá. São 148 anos de história familiar. O meu cliente lá se encontra há 93 anos. Ele afirma, veementemente, que todos os seus familiares que viveram na sua casa ainda permanecem lá, mas os vivos não a querem.
2: É a palavra do seu cliente. Não temos como provar isso.
1: Ainda assim, os vivos não a querem, deixemos para os mortos, então!
2: Os vivos não a querem porque o seu cliente (e talvez a sua família toda que o sr. afirma tão reiteradamente que lá ainda permanece) as espanta!
1: Pelo contrário, meritíssimo. Anexamos à nossa pedida um laudo técnico de especialista que afirma que meu cliente não pode ser responsabilizado pelo medo dos outros moradores.
2: Que tipo de especialista o sr. poderia ter arrumado para isso?
1: O doutorado dela é em análise do discurso jungiana com forte influência dos estudos lacanianos sobre o tema.
2: Muito bem, prossiga.
1: Aqui, nesta passagem da página 7 diz, eu cito: “O que é um fantasma? São os resíduos de uma alma que permanecem ancorados nos mesmos traumas, sem jamais sublimá-los […]. São os assuntos inacabados que, recalcados na nossa memória, impregnam-se psiquicamente em objetos em que investimos nossos desejos, gozos e sofrimentos, tornando-se, estes objetos, a representação simbólica destes sentimentos investidos.”
2: O que isso tem a ver com o medo dos vivos não serem de responsabilidade de seu cliente?
1: Com a máxima vênia, meritíssimo, é necessário que possamos concluir a natureza do meu cliente, para poder comprovar a sua necessária ligação com o imóvel.
2: Prossiga, então.
1: Na página 19: “É certo que fantasmas, portanto, como não são pessoas físicas…
2: Está vendo, a especialista concorda…
1: Deixe-me continuar, por favor…
2: Desculpe-me, continue.
1: … como não são pessoas físicas, não podem criar novas experiências. Estão obrigados a repetir os mesmos gestos, as mesmas dores, as mesmas vergonhas; ser um fantasma é, em si, uma punição, um ‘purgatório’ como exemplifica o imaginário cristão ocidental. Quando falamos de casas assombradas (quase sempre associadas ao advérbio mal, por quê?) a potência destes gestos é amplificada exponencialmente. Basicamente, cada tijolo da residência se vê impregnado de uma memória.” Daí a autora segue com explicações biológicas do funcionamento da memória e prossegue, no finzinho da página 21 para 22: “É costumeiro ouvir sempre as mesmas queixas de gritos, gemidos, choros. São as dores que ficam. O sofrimento humano é a forma mais contundente de memória que temos.
Mas não é só isso que se encontra lá, nas paredes de uma casa assombrada. Há dores sim; crimes, suicídios e grandes atos de violência deixam uma onda emotiva impregnante fortíssima que se estende além do tempo, mas confinada no espaço – a não ser que se reconfigure e se ressignifique na forma de linguagem, quando tudo, então, se sublima e, mesmo mantendo o seu emotivo caráter, torna-se incapaz, por virtude da própria catarse, de infectar mais, ‘exorciza-se’, por assim dizer, a metástase da dor e da loucura –” E, convenhamos, v. ex., esta casa está cheia destas dores: assassinatos, estupros de escravas, os atos finais do cliente contra a sua mulher, o que não faltam são dores para serem ouvidas pela casa! Mas, deixe-me terminar a passagem: “loucura –. Todo o ‘espectro’ emotivo emana dos ‘espectros’ sonâmbulos, algozes de si mesmos, arrastando suas correntes metonímicas pelos vales dos vãos das janelas e frestas das portas.
Há, também, gozo pelos quartos, há risos pelos corredores, os sons de passos não são apenas os pesados e lúgubres, mas a carreira feliz de crianças. Há os almoços em família, os beijos escondidos, mesmos as infidelidades conjugais que se espalham pelos cantos escusos, não trazem apenas vergonha, mas vêm carregadas do prazer do interdito. Tudo que é proibido e descoberto e redescoberto. ‘Tudo que é familiar, mas veio à luz’.
Poucos ‘vivos’ podem sentir isso. A nossa antena mundana apenas se esqueceu de como captar, sofrer é muito mais humano.” Fim da citação.
2: Então, o sr. propõe que a culpa é das vítimas.
1: Não, apenas que não há vítimas neste caso. Os novos moradores se apegam ao feio dos mortos porque é mais fácil do que buscar os seus belos, muito mais profundo e sutil.
2: É a sina de todos os que estamos vivos!
1: Para finalizar, meritíssimo, gostaria de ler o trecho final deste laudo/parecer/ensaio, se v. ex. me permite.
2: Sim, conclua, mas seja breve.


DESASSOMBRADO - Parte 2


1: E em que ponto não possuir um corpo cria um impedimento legal em possuir uma casa?
2: Se a pergunta em si não fosse absurda o suficiente, sr. ad-vo-ga-do, apenas corpos podem possuir CPFs, portanto, apenas corpos podem assinar escrituras e serem juridicamente válidas. As relações legais são feitas entre corpos.
1: Mas o corpo do meu cliente encontra-se enterrado no cemitério…
2: Já basta, sr. advogado! Ao falecer, o CPF é cancelado!
1: O que não impede que meu cliente possa conseguir outro e, destarte, solicitar que a propriedade do imóvel seja transferido para o novo número do meu cliente!
2: Impede sim, sr. advogado, um fantasma não possui corpo, logo, não pode pleitear um cadastro de pessoa FÍ-SI-CA!
1: Data vênia, meritíssimo, e a Vale?
2: O que tem a Vale?
1: Ela é uma empresa, não possui pessoa física, porém, possui propriedades formalizadas pelo Estado!
2: As empresas são pessoas jurídicas.
1: O mesmo caso aplica-se ao meu cliente. Não é uma pessoa física, mas pode ser reconhecido, por este tribunal, como pessoa jurídica.
2: Se este juízo assim o reconhecer, abriria uma jurisprudência que este juízo não possui competência para criar. Outrossim, empresas devem possuir uma sede física, o que não é o caso de seu cliente.
1: Como não, meritíssimo, a própria casa do meu cliente é sua sede, isto é autoevidente.
2: Ainda assim, o que é “autoevidente”, sr. advogado, é que sem um corpo, o seu cliente não pode responder como pessoa jurídica também.
1: Pessoas jurídicas não possuem corpos, meritíssimo!
2: As pessoas jurídicas possuem proprietários físicos corporais ou são formados por um corpo de diretoria de associados anônimos que respondem pelos maus atos das suas empresas!
1: Como a Vale?
2. Como a Vale!
1: Mas, meu cliente pode responder como a consciência de uma pessoa jurídica! Uma espécie de meio termo!
2: Não existe, no Estado moderno, um meio termo entre ser jurídico e ser físico. A pessoa física é sempre proprietária de alguma coisa. Como o Estado poderia processar o seu cliente, sr. advogado, se ele não é uma pessoa física, portanto, não poderia responder por uma pessoa jurídica. Nós criaríamos uma entidade inimputável em que a força e monopólio da violência não a alcançaria, o Estado não pode responder por isso.
1: Ora, o Estado em si é um ente fictício! É uma sociedade contratualizada por leis e normas jurídicas, por procedimentos impessoais, sem um corpo físico que responda juridicamente por ela, pelo contrário, o Estado é a papelada; burocratas e políticos são os seus agentes e gerentes que se responsabilizam por parte do que podem ou não fazer. Mas, o Estado, ele é uma ficção, o Estado, v. ex., é um fantasma!


DESASSOMBRADO - Parte 1


1: Bom dia, meritíssimo, estou aqui hoje para pleitear, em nome de meu cliente, a propriedade legal da sua casa.
2: Desculpe, sr. advogado, mas não estou entendendo corretamente a pedida do seu cliente. Como é que ele deseja isso? Acredito que seja algo que ele não possa pleitear.
1: Por que não, meritíssimo?
2: A casa deixou de ser de seu cliente há muitos anos. Depois que ele a deixou, houve, pelo menos, três outros donos.
1: Mas, meritíssimo, meu cliente jamais deixou a sua casa!
2: Como não?, ele deixou a todos nós!
1: Pelo contrário, meritíssimo. Aquela casa fora construída pelo seu bisavô. Lá, sua avó nasceu, cresceu, casou-se e teve o pai de meu cliente. Da mesma forma, o pai do meu cliente herdou sua casa, lá cresceu, casou e também morou toda a sua vida e deixou de herança para o meu cliente, portanto, o dono legal da propriedade.
2: Mas, sr. advogado, ao deixá-la e a todos nós, como eu já afirmei (e está bem claro, aqui, documentado nos autos), houve, pelo menos, mais outros três donos depois do seu cliente.
1: Por isso, devo reafirmar, que este não é o caso do meu cliente.
2: Como não, sr. advogado?
1: Ora, meritíssimo. Meu cliente também nesta casa nasceu, cresceu. Criou lá uma grande rede de laços afetivos. Casou-se, duas vezes, as suas duas mulheres moraram lá com ele. Todos, TODOS, os seus quatro filhos lá moraram com o pai. Viveu, gozou, sofreu, morreu naquela casa.
2: Matou-se, o sr. quer dizer.
1: A forma da morte não vem ao caso, meritíssimo.
2: Como não vem ao caso, sr. advogado? Esta é a única prova que eu preciso para indeferir a pedida do seu cliente.
1: O que vem ao caso, meritíssimo, é que há trinta anos ninguém mora mais naquela casa. Ninguém a comprou, ninguém a alugou, ninguém lá VIVEU, como meu cliente lá vivera por mais de seis décadas, quase cem, CEM, anos, sem jamais abandoná-la, meritíssimo, diferentemente dos novos donos passados. Caso clássico, meritíssimo, de usucapião, excelência, se não quisermos levar em conta a propriedade como herança.
2: Herança não poderia ser, jamais, porque outras famílias compraram a casa. Não há sentido de que seu cliente herde a propriedade alheia.
1: É justamente por isso que requeremos, de v. ex., o usucapião do imóvel.
2: Um fantasma não pode ter propriedades, sr. advogado!
1: Ora, por que não? Desconheço qualquer cláusula legal que proíba meu cliente, ou qualquer outro fantasma, de ter a propriedade de um imóvel. Negá-la seria negar a propriedade como um direito humano básico.
2: Seu cliente não é humano, sr. advogado.
1: Data vênia, meritíssimo, como o v. ex. pode afirmar isso? Qual a jurisprudência em que o sr. se baseia?
2: O seu cliente, sr. advogado, não-pos-sui-cor-po!



sábado, 29 de junho de 2019

PARAÍSO DO TEU CORPO

Deita aqui na minha rede
Para eu matar nossa sede.
Não terás gota de sono,
E, ao fim, tombarás caída
Com o corpo, desfalecida,
Qual caem folhas no Outono.

Vem deitar aqui ao meu lado.
Meu corpo ao teu grudado
Apagará tua mente;
Nunca mais terás certeza,
Nem dúvida, nem clareza,
Seremos amor somente.

Pela manhã, tu sem mim,
Estarás perdida, sim:
Nunca acharás outro pouso.
E não terás mais conforto
Se distante do meu corpo,
Paraíso do teu gozo.

segunda-feira, 24 de junho de 2019

ESCUSAS, MEU BEM LORPA

Escusas, meu caro amado
Por tu teres descoberto que te traía
Perdoe-me todas as tontices tuas
Que nem sei se me dava conta
Que nem me dava conta se sabias
Que é tudo mentira e fingimento
De quem me expõe e me revela

Por tanto defender-me,
Por tanto vangloriar-me,
Por tanta paixão
Que a outro amado jamais zombei,
Jamais acredite
Nas minhas palavras que
Escutas, jamais finja as verdades que não
Acusas, jamais esqueça estas
Excusas que de tanto amor te envio

segunda-feira, 10 de junho de 2019

A UM TOQUE POR VEZ

Estou te perdendo a um toque por vez
Nos afastamos a um passo por mês
Nos perdemos por olhares através
Deixando suores nos lençóis dos motéis

Esquecemos nossos beijos sob o céu
Rompendo roupas como se fossem véus
E tu te vais, sem causa, toda ao léu,
No mesmo sonho do qual sempre fui fiel

Não esqueci donde viemos
Mas não nos prometemos o que hoje temos
O teu caminho foi se fazendo
E a um toque por vez, acabo te prendendo

sexta-feira, 29 de março de 2019

IMPRESSÕES RETALHADAS


A nova escola é um prédio de remendos.
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De puxada em puxada fora construída. De gambiarra em gambiarra, instalada. Quantos prédios se inserem no mesmo prédio? A primeira, escola pública literalmente dentro da privada: Algumas salas alugadas que, por natureza, dava os fundos para a maior. Os alunos daquela, surdos, eram admitidos na privada através de um fundo de doações europeias (e, aparentemente, alguns professores de hoje foram alunos da privada também financiados por este mesmo fundo), nunca, para mim, muito bem explicado. Fundo de caridade cristã porque o dono da escola era pastor e administrava religiosamente o dinheiro que vinha para as crianças.
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E foi assim por anos, até que o irmão do pastor virasse prefeito e, este, supersecretário informal da gestão – em tudo estava –. Menos na sua escola particular que, agora, tornar-se-ia uma agregada da municipal. O prédio, então, alugou-se. O nome fantasia foi transferido para outrem: fiel da igreja e ex-coordenadora pedagógica da escola do pastor; num bairro vizinho, uns 800m de distância.
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O prédio que, antes, era da escola dos surdos, agora tornou-se uma creche. Novas salas foram erguidas sobre as antigas que tremem sob meus passo pesados. O telhado desajustado, mal a mal retalhado, costurado, as salas sem forro e mal ventiladas, sujas sempre em sempre das partículas de sujidades dos próprios caibros desnudos. Cachoeiras derramam-se nos dias de chuva, criando lagos e ilhotas de crianças: aqui um amontoado; ali outro; acolá mais alguns; morrinhos de meninos e meninas, suando e suando, cozidos no abafado!
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A minha nova escola é assim: um amontoado de bricolage.
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A verdadeira concepção de colcha de retalhos escolar.
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Não são só as salas que se costuram desordenadamente umas às outras – algumas vezes, distraído, com algum papel na mão, quase caio entre os desníveis entre as salas erguidas em momentos histórico-arquitetônicos diferentes –; são crianças e jovens cosidos uns aos outros: ora a sala pequena demais que os obriga a se espremerem, ora os quadros brancos pequenos, remendados uns aos outros para emularem (sem sucesso) um tamanho decente, mas que acabam por roubar mais espaço do que oferecer, sobretudo nos centros onde se conectam. Quadros cortados, retalhados, a canivete, limpos – quando limpos foram – por material impróprio, acabando de vez com sue verniz, as lâmpadas apagadas, queimadas, as janelas mal posicionadas, jogando luz solar que refletem obliquamente na madeira de péssima qualidade pintada de branco.
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Retalham-se os alunos: na mesma sala, criancinhas e adolescente de tantas e quantas reprovações. Alunos cozidos uns aos outros: faltam ventilação e ventiladores. Sobram ameaças de punição: sair para beber água? Não pode entre aulas? Durante as aulas? Escassamente e em filas. São todos bagunceiros. São todos problemáticos, mas há exceções. Se der liberdade, mas têm alguns educados. Ensinar é também amor (a quê, a quem?). Afinal, somos educadores também (também, também, como assim também?). A escola está falida porque não podemos reprovar, como é que se ensina, como é possível ensinar se não podemos reprovar, como é que vão ter interesse pelo assunto se não têm medo da punição da reprovação? Punir, punir, punir porque ainda somos educadores também no final.
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“Jovens, é um ultimato. O diretor puniu cinco ontem por irem aos bebedouros todos juntos no entre-aulas. Não podem mais sair das salas, me desculpem, mas estou eu sozinho para cumprir a disciplina na escola.”
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“Virou, prisão, é?” Uma voz no fundo, escondida – reconheci a dona, não delatei –.
Estou há um mês aqui, mas parece que já estão aprendendo…

sexta-feira, 22 de março de 2019

SONETO

Vês: Moisés era preto, mas Maomé também.
Diz: Jesus era preto e Sidarta também.
Qual a cor do coração dos que dizem amém;
     Que cor têm nossas almas quando vão pro além?
     Até Machado: preto, gago e favelado;
     Todas palavras sábias: elas que cor têm?
Que cortem nossas almas com ódio amolado;
Desidratem as belas vozes da favela
Com as afiadas facas do Patriarcado!
     Martin, Malcolm, Mahatma, Mahin, Mandela:
     Mortes, prisões, torturas, silêncios nos guetos;
     Sir Morien, Dandara, Yas(u)ke, Mariguela;
Xangô, Oxóssi, Zumbi, os Severos, os sem tetos:
São todos nossos nomes, Força e Fé dos povos pretos!

quinta-feira, 21 de março de 2019

O MANIFESTO DO CAMINHONEIRO

"É NAZISMO, PORRA!"

Gritou com veemência
Um caminhoneiro
Parado de greve.

"VOTE NA ELEIÇÃO
NO NAZISMO, IRMÃO,
E TEREI RAZÃO!"
No entanto, o Patrão

Ficou indignado!
Não que moralmente
Fosse ele contrário
Ao Nazismo em si,

Mas, ele, afastado
Quer manter o Estado
De suas empresas.
Por isso, prefere,

Pela discrição,
Força Militar
Para Intervenção,
Que sentava o pau

No povo bandido,
Mas não se metia
Na economia:
Era Liberal.

Naquele período,
Afirma o Patrão,
A TV confirma,
O caminhoneiro

Nos dois acredita
E espalha geral:
"Safadeza não
Tinha. Também nada

Desse feminismo
Que é uma doença
(Todo mundo sabe)!
Sem essa sodomia

E sem corrupção
(Que militar é
Limpo e general
Sempre morre pobre,

Seus filhos também)!
O que esse povinho
Quer é desviar
A boa conduta

Das nossas crianças,
Na Escola ensinando,
Nesses tais 'museus',
Na novela em casa,

Essas safadezas todas
(Só bala na causa)!"
"SABE: IMPOSTO É CRIME
MAS TORTURA, NÃO!"


14/06/2018

terça-feira, 19 de março de 2019

RESILIÊNCIA


Finalmente, hoje foi o dia de eu ter aquela conversa com meu filho. Daqui a um mês e quatro dias, ele completará doze anos e aquelas dúvidas de crianças voltaram para ele e, portanto, é hora de explicar com palavra de verdades, para um rapaz capaz de compreender a sua realidade o maior dilema de sua vida: “Filho, você tem TEA.”

Foi dolorido para o meu coração, foi, com certeza, a realidade infantil se desfez, não havia como manter a fachada de mundo colorido. Quando mais criança, as dúvidas eram: “Por que não consigo jogar futebol com os outros meninos? Por que os coleguinhas não são meus amiguinhos?” Depois: “Por que os coleguinhas ficam mexendo (bullying) comigo?” E o Heroico: “Não chorar mais, papai, eles podem mexer comigo o dia todo que eu não vou chorar, nem gritar na escola. Nem vou bater nos coleguinhas!” Prometeu e cumpriu, por mais difícil que fora não chorar quando te perturbam, sabendo que suas dificuldades sócio-emotivas deixam suas emoções tão à flor da pele: quando alegre, pula de alegria; quando brabo, briga; quando triste, desmancha-se em lágrimas.

Por mais difícil!

Por mais difícil que fosse para eu ter que conversar com ele que ao mesmo tempo que tem que se defender e não deixar ninguém humilhá-lo assim e, na escola, isso significa denunciar os bullies à professora, à coordenadora e à direção (o que fez); ter que também ensiná-lo resiliência, suportar as injustiças porque as pessoas quererão fazê-lo mal, hoje na escola, amanhã na Universidade, depois no trabalho, sempre na rua, às vezes em casa.

“Mas por que mexem comigo?” Como explicar o porquê que vai sofrer (todos nós vamos, mas você talvez mais), sem detalhar as reais causas (não queríamos que muito cedo se sentisse incapaz de qualquer coisa)? Como explicar o que você também está aprendendo a lidar? O que você também tem que vencer: o seu próprio preconceito?

Preconceito que você não sabia que tinha, mas tem, normalmente como condescendência, normalmente como piedade! Nada de piedade, mas oportunidade para desenvolver-se num ambiente saudável e estimulante. Algo que como família sempre tentamos oferecer. Não porque fôssemos ótimos pais, mas porque somos pais. Quantas vezes tive que mudar meus horários nas escolas para me adaptar às suas terapias, quantas horas-aulas (o que significaria mais dinheiro para casa) tive que abdicar para levá-lo? Não porque sou um ótimo pai, mas porque sou pai. Lá, conheci pessoas realmente castigadas, mães que dependem do BPC para botar comida na boca do filho e levá-lo em ônibus lotados e mal adaptados. Perto delas, às vezes parecia até negligente.

Mas, os questionamentos voltaram: “Por que tenho que tomar este remédio todos os dias se não estou doente?” “Ajuda você a se concentrar na escola.” No sábado: “De novo, hoje não tem escola!” “Você precisa tomar todos os dias, ou perderá o efeito.” Então, hoje pela manhã, levando-o para a escola tivemos que conversar.

Eu, muito doído, expliquei da forma que pude o que era TEA, as dificuldades de seu nascimento; das dificuldades motoras que apresenta, tanto na coordenação grossa, quanto na fina; das dificuldades sócio-emotivas, de fazer amigos, de como suas emoções explodem fácil! Como resumir tanta coisa em apenas vinte minutos?

Por mais difícil que fosse para eu ter que conversar com ele, destruindo toda a realidade infantil, esta fachada colorida de mundo que eu mantinha. Meu filho aprendeu bem a lição de seus colegas e de seus pais: resiliente, ouviu tudo, demonstrou compreender e não se importar.

Talvez fosse só o que lhe faltava: este fulcro para organizar a sua narrativa. Ainda falta conhecer as condições de seu nascimento, para compreender as relações causais de sua vida. A partir de agora, um jovem que começa a se formar, poderá contar a sua própria História, poderá se compreender, com a mesma resiliência sua de todos os dias.

Por mais difícil que seja a vida de cada um de nós, sobretudo dos que não são donos de suas próprias narrativas.

sábado, 9 de março de 2019

PRIVATIZAÇÃO (Crônica-Alegoria)


Valquíria Estephanie é uma acompanhante de luxo, mas, um dia, o seu gerente de agendamentos resolveu que lucrar não era o suficiente com ela, precisava torná-la eficiente. Desta sorte, Val que só servia empresários e políticos de grandes escalões foi enviada para a pior sarjeta de toda a cidade.

Val E. desceu ao mais próximo do fundo do poço e ao primeiro sujismundo ofereceu-se. Ora, mas é claro que aceitou! E quem não aceitaria? Que vista, que corpo o de Val: Academias, bronzeamentos, tratamentos mais elitistas! Que cheiro, que pele mais macia: perfumes e cremes os mais caros! Quem não queriria os serviços de Valquíria Estephanie, tão bem tratada para tratar dos maiores empresários!, tão bem servida para servir os mais poderosos políticos!, todos dos mesmos sobrenomes.

Mas Val E. é muito cara!

Estamos em desconto, só por hoje, só para a nossa estreia, a primeira e única noite de sarjeta, 90% de desconto!

Assim ainda vai, assim dá para pagar! Mas não se tendo o dinheiro agora, como faz?

Não temos problemas, a Val te empresta o dinheiro que tu precisa, paga em dois anos, com 5% de juros simples e só precisa começar a pagar daqui a 6 meses.

Agora sim, dá para aceitar a oferta.

Quem não quereria a Valquíria Estephanie nestes termos, embora exorbitantes, ainda é a Val E.!

Porém, Valquíria Estephanie não aceita ser servida em ermos tão sujos! Mas, só se tu pagar o motel do teu bolso!

O que a Val E. não faz para o seu cliente?!? Ela o leva até em casa, inclusive! Tudo incluso! Tudo incluso! Tudo incluso!

Após a prestação de serviço tão bem cumprido, Val E. está pronta para receber o seu pagamento: três tapas na cara! O seu cliente coleta todo o apurado dos últimos meses, vai à porta, paga os 20% por fora do gerente, agora, é minha!

Entra, mais dois tapas na cara de sua propriedade!: já pro muquifo, sua puta! Tu tem que arrecadar, em duas semanas o dinheiro que gastei contigo!

Obrigada, meu patrão, nunca dei tanto, tanto, tanto lucro!

Ainda está pouco! Mais, mais, tu tem que dar mais, mais, mais dividendos, até que um rio de gonorreia e podridão escorra de tuas pernas e mate todos os meninos!

Nesta hora, os teus políticos amigos lembrarão de tu e virão aos teus pés, pisotear-te, dar-me condolências, livrar-me da cadeia, cobrar-te as leis, dar-me novos caminhos, obrigar-te novas taxações e impostos, a mim, mais isenções. Por tua culpa, tua máxima culpa porque não eras eficiente.

Tu jamais daríeis tanto quanto dar-te-ás comigo, tenha pena, tenha pena de mim, Val E., meu amor, para ti guardei todos os meus esforços.

Pobre, pobre de meu dono, não tem culpa de minhas doenças, de minhas mazelas, pobre, pobre de meu dono, fode-me tão pouco e tanto poderiam me foder mais os meus antigos políticos!

Tão eficiente eu estou, derramando lama e lucros.

Perdão, meu dono! Perdão, meu cafetão!

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

ÀS VEZES SÓ SOMEM

Eu sou só
dialogando com este caderno vazio
que boca dura!
que brancura pesada!
que palavras transparentes!

Mas não me dizem nada
estas fúrias tão invisíveis
"Nenhum dos três temos culpa"

Quem teria?

Elas não têm dono
         não devem obediência
         não fazem juízo

Às vezes elas só somem

O MEU POVO

O meu povo

os olhos tristes do meu povo
sem trabalho
sem cultura
sem educação

O meu povo
o espírito triste do meu povo
que eu encontro pelas calçadas
que eu encontro pelas sarjetas
que eu encontro pelas esmolas nossas de cada dia
                              do subemprego
                              da fome adiada
                              da vergonha degustada

O meu povo
    minha carne
    minha língua
    minha falta

O meu povo
que, para além da extensão de mim,
é o todo
do qual faço parte
               sou

O meu povo
quando sofre é
O meu corpo
com fome e fé

quando morre
cada menino preto para o Mercado (de) Negro
quando viola
cada menina pobre para a "vida"
quando cobre
cada pessoa de vergonha pelo pão

O meu povo
sou eu quem me humilha