quarta-feira, 7 de agosto de 2019

DESASSOMBRADO - Parte 3


2: Ainda que seja, é O Estado: a fonte das leis e dos documentos. O deus jurídico! O espírito santo do direito!
1: E o que o Estado pretende fazer com o imóvel do meu cliente? Ninguém lá vive, ninguém quer lá viver. Deixe para os mortos, então!
2: Os mortos? Qual outro pleiteia a propriedade além de seu cliente?
1: De acordo com meu cliente, estão todos lá. São 148 anos de história familiar. O meu cliente lá se encontra há 93 anos. Ele afirma, veementemente, que todos os seus familiares que viveram na sua casa ainda permanecem lá, mas os vivos não a querem.
2: É a palavra do seu cliente. Não temos como provar isso.
1: Ainda assim, os vivos não a querem, deixemos para os mortos, então!
2: Os vivos não a querem porque o seu cliente (e talvez a sua família toda que o sr. afirma tão reiteradamente que lá ainda permanece) as espanta!
1: Pelo contrário, meritíssimo. Anexamos à nossa pedida um laudo técnico de especialista que afirma que meu cliente não pode ser responsabilizado pelo medo dos outros moradores.
2: Que tipo de especialista o sr. poderia ter arrumado para isso?
1: O doutorado dela é em análise do discurso jungiana com forte influência dos estudos lacanianos sobre o tema.
2: Muito bem, prossiga.
1: Aqui, nesta passagem da página 7 diz, eu cito: “O que é um fantasma? São os resíduos de uma alma que permanecem ancorados nos mesmos traumas, sem jamais sublimá-los […]. São os assuntos inacabados que, recalcados na nossa memória, impregnam-se psiquicamente em objetos em que investimos nossos desejos, gozos e sofrimentos, tornando-se, estes objetos, a representação simbólica destes sentimentos investidos.”
2: O que isso tem a ver com o medo dos vivos não serem de responsabilidade de seu cliente?
1: Com a máxima vênia, meritíssimo, é necessário que possamos concluir a natureza do meu cliente, para poder comprovar a sua necessária ligação com o imóvel.
2: Prossiga, então.
1: Na página 19: “É certo que fantasmas, portanto, como não são pessoas físicas…
2: Está vendo, a especialista concorda…
1: Deixe-me continuar, por favor…
2: Desculpe-me, continue.
1: … como não são pessoas físicas, não podem criar novas experiências. Estão obrigados a repetir os mesmos gestos, as mesmas dores, as mesmas vergonhas; ser um fantasma é, em si, uma punição, um ‘purgatório’ como exemplifica o imaginário cristão ocidental. Quando falamos de casas assombradas (quase sempre associadas ao advérbio mal, por quê?) a potência destes gestos é amplificada exponencialmente. Basicamente, cada tijolo da residência se vê impregnado de uma memória.” Daí a autora segue com explicações biológicas do funcionamento da memória e prossegue, no finzinho da página 21 para 22: “É costumeiro ouvir sempre as mesmas queixas de gritos, gemidos, choros. São as dores que ficam. O sofrimento humano é a forma mais contundente de memória que temos.
Mas não é só isso que se encontra lá, nas paredes de uma casa assombrada. Há dores sim; crimes, suicídios e grandes atos de violência deixam uma onda emotiva impregnante fortíssima que se estende além do tempo, mas confinada no espaço – a não ser que se reconfigure e se ressignifique na forma de linguagem, quando tudo, então, se sublima e, mesmo mantendo o seu emotivo caráter, torna-se incapaz, por virtude da própria catarse, de infectar mais, ‘exorciza-se’, por assim dizer, a metástase da dor e da loucura –” E, convenhamos, v. ex., esta casa está cheia destas dores: assassinatos, estupros de escravas, os atos finais do cliente contra a sua mulher, o que não faltam são dores para serem ouvidas pela casa! Mas, deixe-me terminar a passagem: “loucura –. Todo o ‘espectro’ emotivo emana dos ‘espectros’ sonâmbulos, algozes de si mesmos, arrastando suas correntes metonímicas pelos vales dos vãos das janelas e frestas das portas.
Há, também, gozo pelos quartos, há risos pelos corredores, os sons de passos não são apenas os pesados e lúgubres, mas a carreira feliz de crianças. Há os almoços em família, os beijos escondidos, mesmos as infidelidades conjugais que se espalham pelos cantos escusos, não trazem apenas vergonha, mas vêm carregadas do prazer do interdito. Tudo que é proibido e descoberto e redescoberto. ‘Tudo que é familiar, mas veio à luz’.
Poucos ‘vivos’ podem sentir isso. A nossa antena mundana apenas se esqueceu de como captar, sofrer é muito mais humano.” Fim da citação.
2: Então, o sr. propõe que a culpa é das vítimas.
1: Não, apenas que não há vítimas neste caso. Os novos moradores se apegam ao feio dos mortos porque é mais fácil do que buscar os seus belos, muito mais profundo e sutil.
2: É a sina de todos os que estamos vivos!
1: Para finalizar, meritíssimo, gostaria de ler o trecho final deste laudo/parecer/ensaio, se v. ex. me permite.
2: Sim, conclua, mas seja breve.


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