2:
Ainda que seja, é O Estado: a fonte das leis e dos documentos. O
deus jurídico! O espírito santo do direito!
1:
E o que o Estado pretende fazer com o imóvel do meu cliente? Ninguém
lá vive, ninguém quer lá viver. Deixe para os mortos, então!
2:
Os mortos? Qual outro pleiteia a propriedade além de seu cliente?
1:
De acordo com meu cliente, estão todos lá. São 148 anos de
história familiar. O meu cliente lá se encontra há 93 anos. Ele
afirma, veementemente, que todos os seus familiares que viveram na
sua casa ainda permanecem lá, mas os vivos não a querem.
2:
É a palavra do seu cliente. Não temos como provar isso.
1:
Ainda assim, os vivos não a querem, deixemos para os mortos, então!
2:
Os vivos não a querem porque o seu cliente (e talvez a sua família
toda que o sr. afirma tão reiteradamente que lá ainda
permanece) as espanta!
1:
Pelo contrário, meritíssimo. Anexamos à nossa pedida um laudo
técnico de especialista que afirma que meu cliente não pode ser
responsabilizado pelo medo dos outros moradores.
2:
Que tipo de especialista o sr. poderia ter arrumado para isso?
1:
O doutorado dela é em análise do discurso jungiana com forte
influência dos estudos lacanianos sobre o tema.
2:
Muito bem, prossiga.
1:
Aqui, nesta passagem da página 7 diz, eu cito: “O que é um
fantasma? São os resíduos de uma alma que permanecem ancorados nos
mesmos traumas, sem jamais sublimá-los […]. São os assuntos
inacabados que, recalcados na nossa memória, impregnam-se
psiquicamente em objetos em que investimos nossos desejos, gozos e
sofrimentos, tornando-se, estes objetos, a representação simbólica
destes sentimentos investidos.”
2:
O que isso tem a ver com o medo dos vivos não serem de
responsabilidade de seu cliente?
1:
Com a máxima vênia, meritíssimo, é necessário que possamos
concluir a natureza do meu cliente, para poder comprovar a sua
necessária ligação com o imóvel.
2:
Prossiga, então.
1:
Na página 19: “É certo que fantasmas, portanto, como não são
pessoas físicas…
2:
Está vendo, a especialista concorda…
1:
Deixe-me continuar, por favor…
2:
Desculpe-me, continue.
1:
… como não são pessoas físicas, não podem criar novas
experiências. Estão obrigados a repetir os mesmos gestos, as mesmas
dores, as mesmas vergonhas; ser um fantasma é, em si, uma punição,
um ‘purgatório’ como exemplifica o imaginário cristão
ocidental. Quando falamos de casas assombradas (quase sempre
associadas ao advérbio mal, por quê?) a potência destes gestos é
amplificada exponencialmente. Basicamente, cada tijolo da residência
se vê impregnado de uma memória.” Daí a autora segue com
explicações biológicas do funcionamento da memória e prossegue,
no finzinho da página 21 para 22: “É costumeiro ouvir sempre as
mesmas queixas de gritos, gemidos, choros. São as dores que ficam. O
sofrimento humano é a forma mais contundente de memória que temos.
Mas
não é só isso que se encontra lá, nas paredes de uma casa
assombrada. Há dores sim; crimes, suicídios e grandes atos de
violência deixam uma onda emotiva impregnante fortíssima que se
estende além do tempo, mas confinada no espaço – a não ser que
se reconfigure e se ressignifique na forma de linguagem, quando tudo,
então, se sublima e, mesmo mantendo o seu emotivo caráter, torna-se
incapaz, por virtude da própria catarse, de infectar mais,
‘exorciza-se’, por assim dizer, a metástase da dor e da loucura
–” E, convenhamos, v. ex., esta casa está cheia destas dores:
assassinatos, estupros de escravas, os atos finais do cliente contra
a sua mulher, o que não faltam são dores para serem ouvidas pela
casa! Mas, deixe-me terminar a passagem: “loucura –. Todo o
‘espectro’ emotivo emana dos ‘espectros’ sonâmbulos, algozes
de si mesmos, arrastando suas correntes metonímicas pelos vales dos
vãos das janelas e frestas das portas.
Há,
também, gozo pelos quartos, há risos pelos corredores, os sons de
passos não são apenas os pesados e lúgubres, mas a carreira feliz
de crianças. Há os almoços em família, os beijos escondidos,
mesmos as infidelidades conjugais que se espalham pelos cantos
escusos, não trazem apenas vergonha, mas vêm carregadas do prazer
do interdito. Tudo que é proibido e descoberto e redescoberto. ‘Tudo
que é familiar, mas veio à luz’.
Poucos
‘vivos’ podem sentir isso. A nossa antena mundana apenas se
esqueceu de como captar, sofrer é muito mais humano.” Fim da
citação.
2:
Então, o sr. propõe que a culpa é das vítimas.
1:
Não, apenas que não há vítimas neste caso. Os novos moradores se
apegam ao feio dos mortos porque é mais fácil do que buscar os seus
belos, muito mais profundo e sutil.
2:
É a sina de todos os que estamos vivos!
1:
Para finalizar, meritíssimo, gostaria de ler o trecho final deste
laudo/parecer/ensaio, se v. ex. me permite.
2:
Sim, conclua, mas seja breve.
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