1:
Como não, excelência? Se toda a questão aqui é que meu cliente
perdera o CPF, logo, o título de propriedade de si mesmo depois de
um processo burocrático que se dá início com a emissão do
atestado de óbito! É o Estado que comprova que nascemos, com o
registro, assim como antes, a Igreja comprovava com a documentação
batismal. O Estado prova que estamos vivos com o CPF e que somos quem
somos. Lembremos, meritíssimo, que não é o RG que parece conosco,
mas nós é que somos idênticos a ele.
2:
Mas o Estado já emitiu o atestado que seu cliente morrera há mais
de trinta anos!
1:
No entanto, o que meu cliente exige é que se declare, que se
reconheça, não que ele morreu, muito menos que nasceu, mas a sua
qualidade de pós-vivo!
2:
Isto é um absurdo, sr. advogado!
1:
Como absurdo, excelência?, meu cliente está pós-vivo bem na sua
frente!
2:
A bem da verdade, eu “o” vejo, ainda que translúcido.
1: E como das provas de sua ligação, por assim dizer, “telúrica” com o seu patrimônio, fez-se mister transportarmos alguns tijolos do porão onde atentou contra a sua propriedade primeira.
1: E como das provas de sua ligação, por assim dizer, “telúrica” com o seu patrimônio, fez-se mister transportarmos alguns tijolos do porão onde atentou contra a sua propriedade primeira.
2:
Realmente elucidativo neste mister.
1:
O mister maior, no entanto, excelentíssimo míster
(perdoe-me o chiste) [ambos sorriem satisfeitos do agradável
gracejo], é, esta face atormentada aqui, carregada por algumas
“células” de sua grande angústia, não sensibiliza v. ex. para
o seu caso? Veja tanto sofrimento (eterno, eterno devo relembrar
sempre, porquanto o imóvel esteja “de-pé”) sem fim numa casa
abandonada (e para sempre abandonada, não me escuso em dizer,
porquanto o meu cliente esteja “aqui”)? Há uma correlação
inexorável presentificada. Ou, perdoe-me o tom de ultimato,
magistrado, mas, ou bem se reconhece o meu cliente como o
pós-vivo-consciência de uma propriedade privada física, ou
demole-se a casa e “mata-se” a ambos.
2:
É muito, mas muito mesmo no que pensar mesmo. Antes que eu decida,
porém, o seu cliente gostaria de se manifestar ao juízo sobre o seu
caso?
3:
AaaaaaaaaAAAAAAaaaaaaAAAAAAAaaaaH!!!!
1:
Deveras eloquente, deveras!
2:
O sr. me deixa numa encruzilhada: se eu indefiro a sua pedida, nego
ao seu cliente o direito à sua propriedade privada; se defiro,
concedo a uma casa o direito a ser proprietária de si mesma,
portanto um indivíduo. De qualquer sorte, estarei fragmentando os
alicerces da nossa sociedade que é a relação contratual entre os
corpos. O que mais me assusta é que esta sua doutora em linguística
sobrenatural tenha criado o direito fantasmagórico!
3:
AaaaaaaaaAAAAAAaaaaaaAAAAAAAaaaaH!!!!
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