quarta-feira, 7 de agosto de 2019

DESASSOMBRADO - Parte 5 - Final


1: Como não, excelência? Se toda a questão aqui é que meu cliente perdera o CPF, logo, o título de propriedade de si mesmo depois de um processo burocrático que se dá início com a emissão do atestado de óbito! É o Estado que comprova que nascemos, com o registro, assim como antes, a Igreja comprovava com a documentação batismal. O Estado prova que estamos vivos com o CPF e que somos quem somos. Lembremos, meritíssimo, que não é o RG que parece conosco, mas nós é que somos idênticos a ele.
2: Mas o Estado já emitiu o atestado que seu cliente morrera há mais de trinta anos!
1: No entanto, o que meu cliente exige é que se declare, que se reconheça, não que ele morreu, muito menos que nasceu, mas a sua qualidade de pós-vivo!
2: Isto é um absurdo, sr. advogado!
1: Como absurdo, excelência?, meu cliente está pós-vivo bem na sua frente!
2: A bem da verdade, eu “o” vejo, ainda que translúcido.
1: E como das provas de sua ligação, por assim dizer, “telúrica” com o seu patrimônio, fez-se mister transportarmos alguns tijolos do porão onde atentou contra a sua propriedade primeira.
2: Realmente elucidativo neste mister.
1: O mister maior, no entanto, excelentíssimo míster (perdoe-me o chiste) [ambos sorriem satisfeitos do agradável gracejo], é, esta face atormentada aqui, carregada por algumas “células” de sua grande angústia, não sensibiliza v. ex. para o seu caso? Veja tanto sofrimento (eterno, eterno devo relembrar sempre, porquanto o imóvel esteja “de-pé”) sem fim numa casa abandonada (e para sempre abandonada, não me escuso em dizer, porquanto o meu cliente esteja “aqui”)? Há uma correlação inexorável presentificada. Ou, perdoe-me o tom de ultimato, magistrado, mas, ou bem se reconhece o meu cliente como o pós-vivo-consciência de uma propriedade privada física, ou demole-se a casa e “mata-se” a ambos.
2: É muito, mas muito mesmo no que pensar mesmo. Antes que eu decida, porém, o seu cliente gostaria de se manifestar ao juízo sobre o seu caso?
3: AaaaaaaaaAAAAAAaaaaaaAAAAAAAaaaaH!!!!
1: Deveras eloquente, deveras!
2: O sr. me deixa numa encruzilhada: se eu indefiro a sua pedida, nego ao seu cliente o direito à sua propriedade privada; se defiro, concedo a uma casa o direito a ser proprietária de si mesma, portanto um indivíduo. De qualquer sorte, estarei fragmentando os alicerces da nossa sociedade que é a relação contratual entre os corpos. O que mais me assusta é que esta sua doutora em linguística sobrenatural tenha criado o direito fantasmagórico!
3: AaaaaaaaaAAAAAAaaaaaaAAAAAAAaaaaH!!!!

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