sexta-feira, 29 de março de 2019

IMPRESSÕES RETALHADAS


A nova escola é um prédio de remendos.
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De puxada em puxada fora construída. De gambiarra em gambiarra, instalada. Quantos prédios se inserem no mesmo prédio? A primeira, escola pública literalmente dentro da privada: Algumas salas alugadas que, por natureza, dava os fundos para a maior. Os alunos daquela, surdos, eram admitidos na privada através de um fundo de doações europeias (e, aparentemente, alguns professores de hoje foram alunos da privada também financiados por este mesmo fundo), nunca, para mim, muito bem explicado. Fundo de caridade cristã porque o dono da escola era pastor e administrava religiosamente o dinheiro que vinha para as crianças.
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E foi assim por anos, até que o irmão do pastor virasse prefeito e, este, supersecretário informal da gestão – em tudo estava –. Menos na sua escola particular que, agora, tornar-se-ia uma agregada da municipal. O prédio, então, alugou-se. O nome fantasia foi transferido para outrem: fiel da igreja e ex-coordenadora pedagógica da escola do pastor; num bairro vizinho, uns 800m de distância.
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O prédio que, antes, era da escola dos surdos, agora tornou-se uma creche. Novas salas foram erguidas sobre as antigas que tremem sob meus passo pesados. O telhado desajustado, mal a mal retalhado, costurado, as salas sem forro e mal ventiladas, sujas sempre em sempre das partículas de sujidades dos próprios caibros desnudos. Cachoeiras derramam-se nos dias de chuva, criando lagos e ilhotas de crianças: aqui um amontoado; ali outro; acolá mais alguns; morrinhos de meninos e meninas, suando e suando, cozidos no abafado!
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A minha nova escola é assim: um amontoado de bricolage.
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A verdadeira concepção de colcha de retalhos escolar.
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Não são só as salas que se costuram desordenadamente umas às outras – algumas vezes, distraído, com algum papel na mão, quase caio entre os desníveis entre as salas erguidas em momentos histórico-arquitetônicos diferentes –; são crianças e jovens cosidos uns aos outros: ora a sala pequena demais que os obriga a se espremerem, ora os quadros brancos pequenos, remendados uns aos outros para emularem (sem sucesso) um tamanho decente, mas que acabam por roubar mais espaço do que oferecer, sobretudo nos centros onde se conectam. Quadros cortados, retalhados, a canivete, limpos – quando limpos foram – por material impróprio, acabando de vez com sue verniz, as lâmpadas apagadas, queimadas, as janelas mal posicionadas, jogando luz solar que refletem obliquamente na madeira de péssima qualidade pintada de branco.
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Retalham-se os alunos: na mesma sala, criancinhas e adolescente de tantas e quantas reprovações. Alunos cozidos uns aos outros: faltam ventilação e ventiladores. Sobram ameaças de punição: sair para beber água? Não pode entre aulas? Durante as aulas? Escassamente e em filas. São todos bagunceiros. São todos problemáticos, mas há exceções. Se der liberdade, mas têm alguns educados. Ensinar é também amor (a quê, a quem?). Afinal, somos educadores também (também, também, como assim também?). A escola está falida porque não podemos reprovar, como é que se ensina, como é possível ensinar se não podemos reprovar, como é que vão ter interesse pelo assunto se não têm medo da punição da reprovação? Punir, punir, punir porque ainda somos educadores também no final.
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“Jovens, é um ultimato. O diretor puniu cinco ontem por irem aos bebedouros todos juntos no entre-aulas. Não podem mais sair das salas, me desculpem, mas estou eu sozinho para cumprir a disciplina na escola.”
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“Virou, prisão, é?” Uma voz no fundo, escondida – reconheci a dona, não delatei –.
Estou há um mês aqui, mas parece que já estão aprendendo…

sexta-feira, 22 de março de 2019

SONETO

Vês: Moisés era preto, mas Maomé também.
Diz: Jesus era preto e Sidarta também.
Qual a cor do coração dos que dizem amém;
     Que cor têm nossas almas quando vão pro além?
     Até Machado: preto, gago e favelado;
     Todas palavras sábias: elas que cor têm?
Que cortem nossas almas com ódio amolado;
Desidratem as belas vozes da favela
Com as afiadas facas do Patriarcado!
     Martin, Malcolm, Mahatma, Mahin, Mandela:
     Mortes, prisões, torturas, silêncios nos guetos;
     Sir Morien, Dandara, Yas(u)ke, Mariguela;
Xangô, Oxóssi, Zumbi, os Severos, os sem tetos:
São todos nossos nomes, Força e Fé dos povos pretos!

quinta-feira, 21 de março de 2019

O MANIFESTO DO CAMINHONEIRO

"É NAZISMO, PORRA!"

Gritou com veemência
Um caminhoneiro
Parado de greve.

"VOTE NA ELEIÇÃO
NO NAZISMO, IRMÃO,
E TEREI RAZÃO!"
No entanto, o Patrão

Ficou indignado!
Não que moralmente
Fosse ele contrário
Ao Nazismo em si,

Mas, ele, afastado
Quer manter o Estado
De suas empresas.
Por isso, prefere,

Pela discrição,
Força Militar
Para Intervenção,
Que sentava o pau

No povo bandido,
Mas não se metia
Na economia:
Era Liberal.

Naquele período,
Afirma o Patrão,
A TV confirma,
O caminhoneiro

Nos dois acredita
E espalha geral:
"Safadeza não
Tinha. Também nada

Desse feminismo
Que é uma doença
(Todo mundo sabe)!
Sem essa sodomia

E sem corrupção
(Que militar é
Limpo e general
Sempre morre pobre,

Seus filhos também)!
O que esse povinho
Quer é desviar
A boa conduta

Das nossas crianças,
Na Escola ensinando,
Nesses tais 'museus',
Na novela em casa,

Essas safadezas todas
(Só bala na causa)!"
"SABE: IMPOSTO É CRIME
MAS TORTURA, NÃO!"


14/06/2018

terça-feira, 19 de março de 2019

RESILIÊNCIA


Finalmente, hoje foi o dia de eu ter aquela conversa com meu filho. Daqui a um mês e quatro dias, ele completará doze anos e aquelas dúvidas de crianças voltaram para ele e, portanto, é hora de explicar com palavra de verdades, para um rapaz capaz de compreender a sua realidade o maior dilema de sua vida: “Filho, você tem TEA.”

Foi dolorido para o meu coração, foi, com certeza, a realidade infantil se desfez, não havia como manter a fachada de mundo colorido. Quando mais criança, as dúvidas eram: “Por que não consigo jogar futebol com os outros meninos? Por que os coleguinhas não são meus amiguinhos?” Depois: “Por que os coleguinhas ficam mexendo (bullying) comigo?” E o Heroico: “Não chorar mais, papai, eles podem mexer comigo o dia todo que eu não vou chorar, nem gritar na escola. Nem vou bater nos coleguinhas!” Prometeu e cumpriu, por mais difícil que fora não chorar quando te perturbam, sabendo que suas dificuldades sócio-emotivas deixam suas emoções tão à flor da pele: quando alegre, pula de alegria; quando brabo, briga; quando triste, desmancha-se em lágrimas.

Por mais difícil!

Por mais difícil que fosse para eu ter que conversar com ele que ao mesmo tempo que tem que se defender e não deixar ninguém humilhá-lo assim e, na escola, isso significa denunciar os bullies à professora, à coordenadora e à direção (o que fez); ter que também ensiná-lo resiliência, suportar as injustiças porque as pessoas quererão fazê-lo mal, hoje na escola, amanhã na Universidade, depois no trabalho, sempre na rua, às vezes em casa.

“Mas por que mexem comigo?” Como explicar o porquê que vai sofrer (todos nós vamos, mas você talvez mais), sem detalhar as reais causas (não queríamos que muito cedo se sentisse incapaz de qualquer coisa)? Como explicar o que você também está aprendendo a lidar? O que você também tem que vencer: o seu próprio preconceito?

Preconceito que você não sabia que tinha, mas tem, normalmente como condescendência, normalmente como piedade! Nada de piedade, mas oportunidade para desenvolver-se num ambiente saudável e estimulante. Algo que como família sempre tentamos oferecer. Não porque fôssemos ótimos pais, mas porque somos pais. Quantas vezes tive que mudar meus horários nas escolas para me adaptar às suas terapias, quantas horas-aulas (o que significaria mais dinheiro para casa) tive que abdicar para levá-lo? Não porque sou um ótimo pai, mas porque sou pai. Lá, conheci pessoas realmente castigadas, mães que dependem do BPC para botar comida na boca do filho e levá-lo em ônibus lotados e mal adaptados. Perto delas, às vezes parecia até negligente.

Mas, os questionamentos voltaram: “Por que tenho que tomar este remédio todos os dias se não estou doente?” “Ajuda você a se concentrar na escola.” No sábado: “De novo, hoje não tem escola!” “Você precisa tomar todos os dias, ou perderá o efeito.” Então, hoje pela manhã, levando-o para a escola tivemos que conversar.

Eu, muito doído, expliquei da forma que pude o que era TEA, as dificuldades de seu nascimento; das dificuldades motoras que apresenta, tanto na coordenação grossa, quanto na fina; das dificuldades sócio-emotivas, de fazer amigos, de como suas emoções explodem fácil! Como resumir tanta coisa em apenas vinte minutos?

Por mais difícil que fosse para eu ter que conversar com ele, destruindo toda a realidade infantil, esta fachada colorida de mundo que eu mantinha. Meu filho aprendeu bem a lição de seus colegas e de seus pais: resiliente, ouviu tudo, demonstrou compreender e não se importar.

Talvez fosse só o que lhe faltava: este fulcro para organizar a sua narrativa. Ainda falta conhecer as condições de seu nascimento, para compreender as relações causais de sua vida. A partir de agora, um jovem que começa a se formar, poderá contar a sua própria História, poderá se compreender, com a mesma resiliência sua de todos os dias.

Por mais difícil que seja a vida de cada um de nós, sobretudo dos que não são donos de suas próprias narrativas.

sábado, 9 de março de 2019

PRIVATIZAÇÃO (Crônica-Alegoria)


Valquíria Estephanie é uma acompanhante de luxo, mas, um dia, o seu gerente de agendamentos resolveu que lucrar não era o suficiente com ela, precisava torná-la eficiente. Desta sorte, Val que só servia empresários e políticos de grandes escalões foi enviada para a pior sarjeta de toda a cidade.

Val E. desceu ao mais próximo do fundo do poço e ao primeiro sujismundo ofereceu-se. Ora, mas é claro que aceitou! E quem não aceitaria? Que vista, que corpo o de Val: Academias, bronzeamentos, tratamentos mais elitistas! Que cheiro, que pele mais macia: perfumes e cremes os mais caros! Quem não queriria os serviços de Valquíria Estephanie, tão bem tratada para tratar dos maiores empresários!, tão bem servida para servir os mais poderosos políticos!, todos dos mesmos sobrenomes.

Mas Val E. é muito cara!

Estamos em desconto, só por hoje, só para a nossa estreia, a primeira e única noite de sarjeta, 90% de desconto!

Assim ainda vai, assim dá para pagar! Mas não se tendo o dinheiro agora, como faz?

Não temos problemas, a Val te empresta o dinheiro que tu precisa, paga em dois anos, com 5% de juros simples e só precisa começar a pagar daqui a 6 meses.

Agora sim, dá para aceitar a oferta.

Quem não quereria a Valquíria Estephanie nestes termos, embora exorbitantes, ainda é a Val E.!

Porém, Valquíria Estephanie não aceita ser servida em ermos tão sujos! Mas, só se tu pagar o motel do teu bolso!

O que a Val E. não faz para o seu cliente?!? Ela o leva até em casa, inclusive! Tudo incluso! Tudo incluso! Tudo incluso!

Após a prestação de serviço tão bem cumprido, Val E. está pronta para receber o seu pagamento: três tapas na cara! O seu cliente coleta todo o apurado dos últimos meses, vai à porta, paga os 20% por fora do gerente, agora, é minha!

Entra, mais dois tapas na cara de sua propriedade!: já pro muquifo, sua puta! Tu tem que arrecadar, em duas semanas o dinheiro que gastei contigo!

Obrigada, meu patrão, nunca dei tanto, tanto, tanto lucro!

Ainda está pouco! Mais, mais, tu tem que dar mais, mais, mais dividendos, até que um rio de gonorreia e podridão escorra de tuas pernas e mate todos os meninos!

Nesta hora, os teus políticos amigos lembrarão de tu e virão aos teus pés, pisotear-te, dar-me condolências, livrar-me da cadeia, cobrar-te as leis, dar-me novos caminhos, obrigar-te novas taxações e impostos, a mim, mais isenções. Por tua culpa, tua máxima culpa porque não eras eficiente.

Tu jamais daríeis tanto quanto dar-te-ás comigo, tenha pena, tenha pena de mim, Val E., meu amor, para ti guardei todos os meus esforços.

Pobre, pobre de meu dono, não tem culpa de minhas doenças, de minhas mazelas, pobre, pobre de meu dono, fode-me tão pouco e tanto poderiam me foder mais os meus antigos políticos!

Tão eficiente eu estou, derramando lama e lucros.

Perdão, meu dono! Perdão, meu cafetão!