No entanto, por outro ponto, representa quatro passos para trás. O primeiro retrocesso diz respeito a própria forma de renovação do gênero. O Axé Music foi prontamente absorvido pelo Mercado como produto inerente do comércio carnavalesco baiano e, desta forma, quantos mais nomes de artistas a Bahia produzia em massa, numa escala de invejar o próprio Henry Ford, mais estes pareciam consigo mesmos. A parecença, se marca o DNA dum gênero, também indica o que há de pior nele, sua capacidade de renovação é substituída pelos mesmos maneirismos que o indentificam - e nem sempre marcam o que há de melhor neste gênero -. Convém lembrar como diversas escolas literárias, no percurso em que se encaminham para serem substituídas pela nova escola emergente, tornam-se um simulacro, um arremedo sarcástico e risível do que as caracteriza: o Neoclassismo e suas repetições de divindade pastoris, infértil de emoção nas mãos inábeis de burgueses citadinos; o Romantismo com seu sentimentalismo exagerado e piegas de velhos que fingiam as mesmas dores adolescentes que tinham há 30 anos, sem nunca crescer, chorando pelas mesmas mulheres intocáveis.
O segundo passo atrás foi o "fenômeno-abadá". O Mercado ao se apropriar do produto cultural, e incapaz de cobrar por ele em si, cobra pelo seu entorno, cerca-se num cordão de isolamento, ergue camarotes e, destes, os VIPs. No decorrer destes trinta anos de seu surgimento, a elitização do carnaval baiano figura-se num verdadeiro bloco de classes: eis aqui aqueles que podem pagar pelo abadá, e ali vão os que "pulam que nem pipoca", numa clara alusão ao fato que a alegria carnavalesca está presente é na "plebe", a elite, neste caso bem específico, apenas imita. O absurdo desta perspectiva é que, se autêntica, indicaria que o carnaval da Bahia é um anti-Carnaval: ora, a festa da carne surge, na Idade Média, como forma de catarse social: Momo é coroado, o bobo da corte conduz os festejos - não o bispo -: o corpo, a sexualidade, o baixo ventre, tornam-se permitidos. Carnavalizar é rir do rei, não separá-lo da plebe em listas VIPs em que permaneça isolado e invisível. A elite carnavalesca, num país como o Brasil, deveria ser preta, pobre e "pipocante", não empurrada ao lado duma corda tosca e ao largo das câmeras de TV que transmitem, incessantemente, os blocos que se sucedem na avenida (seria importante pesquisar a relação de QUAIS blocos carnavalescos não possuem o cordão de isolamento e como eles são tratados pela mídia mercadológica que lucra por transmitir o evento).
Observamos, também, a descartabilidade do produto que é grande parte da Axé Music. Se consigo, com algum esforço, lembrar de canções deste gênero com mais de 25 anos, não conheço, pessoalmente, ninguém capaz de lembrar qual foi o sucesso de dez anos atrás. O processo de massificação em larga escala do produto e sua reprodução em velocidade alucinante, tornam-no perecível. Em primeiro lugar, a "música do carnaval" é decidida meses antes num verdadeiro concurso, e tocada à exaustão até que Março finde. É verdade que a música, como as artes cênicas (e como arte cênica incluo o teatro propriamente dito, o circo, a dança e o cinema), é uma arte que se desenvolve no tempo, ao contrário das artes plásticas (pintura, escultura, artesanato e toda a sorte de intervenções físicas, como a arquitetura) que se desenvolvem no espaço (a literatura é um terceiro monstro, pois a palavra dita aproxima-se da música e a palavra escrita do desenho e, desde Marllamé, não se imagina um texto fora do que se convenciona chamar de cultura popular que não seja produzida para ser LIDO, de forma a apreciar-se tanto o seus aspectos melódicos quanto imagéticos). Como arte temporal, a música existe enquanto se ouve, logo após inexiste; ora, o tempo é a própria matéria da música, dominando toda a teoria dos ritmos e dando significado aos silêncios. No entanto, a massificação da produção cultural é tal que se desaparece a questão da qualidade, há uma guerra perene pela próxima canção, lançar a próxima "música do carnaval", é uma busca tão grande de parecenças e similaridades que desaparecem quaisquer aspectos de criação/inovação artística (salvas as óbvias exceções) e para uma pessoa, que como eu, não acompanha de perto o dia a dia dos artistas deste gênero e acaba, todo Fevereiro-Março, sendo bombardeado pela tonelada de canções idênticas com vozes parecidas, tornamo-nos incapazes de difencia-las: são todas iguais, com as mesmas características e qualidades (as exceções tornam-se, inexoravelmente, impossíveis de identificar). O gênero foi tornado tão palatável para um certo público distante das avenidades e das raízes carnavalescas, mas que ao mesmo tempo gera um lucro incomensurável a este Mercado, e, correlatamente, aos artistas do gênero, que é como se tornasse uma só canção, e aquele que aparece uma vez no ano, com abadá e isolado ou no camarote, consegue acompanhar tudo, cantar tudo, haja vista que soam como contiguidades, não individualidades (artistas diferentes cantam canções uns dos outros também, facilitando o processo).
Nessa necessidade de imitar uma carnavalização perdida, na sua pressa de produzir, o Axé Music constrói letras que se fingem alegres, apelando para a sexualização e permissividade total. Não há engano, porém, que a festa da carne é a festa do baixo ventre: a vagina, o pênis e, mormente, o ânus. Mas é a festa de inversão de papéis, não só das "xirumbas" (gente transvestida, homem-mulher-homem), mas da plebe-clero, bobo-rei. No entanto, ao que parece numa necessidade infeliz de agradar os mesmos que geram lucro, a inversão para na página dois, no sexo pelo sexo, e inicia-se a corrida de quem produz o texto mais misógino, mais racista possível, e todos num tom alegre, cômico, risível, infantil até. Se há mais de vinte anos foi possível um sucesso cantando: "Meu cabelo duro..." (Por mais que esta frase, em si, já apresente caracteres racistas, de certa forma é uma autoafirmação da própria negritude.) Hoje, esta frase tornou-se praticamente inviável! À parte sintagmas dúbios ("negra-loura"; "quero meu negão de lado"), as letras que enfatizam a negritude passaram a ser questão de nicho. O negro no carnaval é um fantasia de "humor negro": pinta-se de um preto-piche, como nos filmes de Hollywood dos anos 20-30, e ri-se da "nega-maluca". O branco, o pardo pintar-se de preto é engraçado, como fingir-se de monstros ou palhaços, mas não se vê alguém fantasiado de louro, porque o branco não é engraçado, é sério e bonito (logo não há inversão de papéis sociais, inexiste a carnavalização). O lugar da mulher, por sua vez, é que realmente é preocupante, delegada ao status de instrumento sexual do macho, fomentando ideias tais como de que a mulher deve se submeter a qualquer um que queira forçar-lhe o beijo.
O ponto nevrálgico desta discussão é como uma inovação cultural brasileira conseguiu, no caminhar de poucos anos, regredir ao ponto de estabelecer-se como uma forma contra-inovativa. E de maneira ainda mais perturbadora, o símbolo de um dos maiores carnavais brasileiros configura-se tão somente como marca do anti-carnaval, um símbolo que ao invés de promover a carnavalização social, marca, define e amplia a diferença entre elite (imitadora neste caso) do "povão" (donde gera-se todo o impulso carnavalesco). Este gênero hoje vive de diferenciar o carnaval do abadá, do carnaval pipoqueiro que cada vez mais se vê relegado às bordas magras dos cordões de isolamento dos trios elétricos.
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