Por curioso que possa parecer,
foi um filósofo, o iluminista escocês do século XVIII David Hume,
quem propôs que as escolas públicas não deveriam ter ensino de
Humanidades, mas apenas o que fosse necessário para a formação de
um bom trabalhador ou de um bom burguês.
De certo, as Humanidades não
inventam máquinas ou constroem pontes, como as engenharias, não
ensinam a fazer pólvora nem remédios, como a química e a biologia
podem ensinar.
Então para quê ensinar
Humanidades se não servem para a humanidade? Perguntam-se os
pensadores liberais desde os Setecentos até hoje. Os conservadores
responderiam: para incutir, nos jovens, valores morais que servem de
base clássica para tradição da nossa sociedade.
Humanistas progressistas
responderiam simplesmente: o valor de se ensinar Humanidades na
escola pública está no próprio ato de perguntar o Por
quê
de se ensiná-las, ensinar qualquer coisa, ou até mesmo, o ato
fundador de perguntar, tão simplesmente: por
que.
As
exatas (engenharias, químicas, biológicas, filhas todas, de certo
grau, da matemática) são cheias de respostas, de resultados, onde
não há erro, no máximo aproximação e arredondamento. As
Humanidades (descendentes que são da filosofia) só têm perguntas.
Uma ensina a encontrar soluções, outra a formular questões.
Humanidades
constroem pontes e estradas entre pessoas, curam, não os corpos, mas
as almas de nossos traumas, vencem guerras com a força da pena. O
poeta Paulo Leminski caracterizava a poesia como um inutensílioi:
A
poesia é o inutensílio. A única razão de ser da poesia é que ela
faz parte daquelas coisas inúteis da vida que não precisam de
justificativa. Porque elas são a própria razão de ser da vida.
Querer que a poesia tenha um porquê, querer que a poesia esteja a
serviço de alguma coisa é a mesma coisa que querer que o orgasmo
tenha um porquê, que a amizade e o afeto tenham um porquê. A poesia
faz parte daquelas coisas que não precisam de um porquê.
As Humanidades ensinam-nos a ser
humanos, a ordenar o caos de nossa psiquê, a compreender melhor a
organização de nossa sociedade e o nosso lugar como sujeito dentro
da comunidade a qual pertencemos.
Porque a palavra é ideologia, o
que se diz revela o que se pensa e de onde se pensa, “as
declarações”, escreve Mikhail Bakhtin, “são a arena de uma
luta desesperada com a palavra do outro em todas as esferas da vida e
da criação ideológica”, e complementa afirmando que “todo ato
essencial [do homem social] é interpretado ideologicamente pela
palavra ou diretamente encarnado nela”ii.
Desta forma, as obras de arte
voltam-se para dor, para o sofrimento, pois um humano só pode ser
conhecido por outro ser humano através deste mesmo sofrimento. Por
isso, como ensina o mestre Antonio Candidoiii,
a literatura, ao mergulhar na radicalidade do ser, confirma em nós a
nossa humanidade.
Na alegria, no prazer, não
somos compreendidos, não há amigos de verdade nestes momentos,
porque neles há só solidão. Compaixão e empatia existem apenas
quando nos colocamos no lugar do outro, tentamos entender a sua dor,
e a arte, ao colocar-nos no lugar das personagens, dentro de suas
mentes, ensina-nos a nos colocar de outras pessoas, tentar pensar
como elas.
As Humanidades, portanto,
mostram-nos como questionar o mundo que nos envolve, dissolver as
certezas e procurar o nosso próprio caminho, mas, acima de tudo,
como ser um ser humano melhor, tanto como pessoa – organizando a
nossa alma – quanto como cidadão, desvendando-nos a forma de
interagir-nos com os outros.
i
A fala de Paulo Leminski sobre a poesia pode ser ouvida aqui:
.
ii
BAKHTIN, Mikhail. A pessoa que fala no romance. In: -----. Questões
de literatura e de estética:
a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et
alli.
São Paulo, HUCITEC, 1988.
iii
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: -----. Vários
escritos.
3 ed. rev. e ampl. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
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