segunda-feira, 27 de junho de 2016

POR QUE HUMANIDADES?

Por curioso que possa parecer, foi um filósofo, o iluminista escocês do século XVIII David Hume, quem propôs que as escolas públicas não deveriam ter ensino de Humanidades, mas apenas o que fosse necessário para a formação de um bom trabalhador ou de um bom burguês.

De certo, as Humanidades não inventam máquinas ou constroem pontes, como as engenharias, não ensinam a fazer pólvora nem remédios, como a química e a biologia podem ensinar.

Então para quê ensinar Humanidades se não servem para a humanidade? Perguntam-se os pensadores liberais desde os Setecentos até hoje. Os conservadores responderiam: para incutir, nos jovens, valores morais que servem de base clássica para tradição da nossa sociedade.

Humanistas progressistas responderiam simplesmente: o valor de se ensinar Humanidades na escola pública está no próprio ato de perguntar o Por quê de se ensiná-las, ensinar qualquer coisa, ou até mesmo, o ato fundador de perguntar, tão simplesmente: por que.

As exatas (engenharias, químicas, biológicas, filhas todas, de certo grau, da matemática) são cheias de respostas, de resultados, onde não há erro, no máximo aproximação e arredondamento. As Humanidades (descendentes que são da filosofia) só têm perguntas. Uma ensina a encontrar soluções, outra a formular questões.

Humanidades constroem pontes e estradas entre pessoas, curam, não os corpos, mas as almas de nossos traumas, vencem guerras com a força da pena. O poeta Paulo Leminski caracterizava a poesia como um inutensílioi:

A poesia é o inutensílio. A única razão de ser da poesia é que ela faz parte daquelas coisas inúteis da vida que não precisam de justificativa. Porque elas são a própria razão de ser da vida. Querer que a poesia tenha um porquê, querer que a poesia esteja a serviço de alguma coisa é a mesma coisa que querer que o orgasmo tenha um porquê, que a amizade e o afeto tenham um porquê. A poesia faz parte daquelas coisas que não precisam de um porquê.

As Humanidades ensinam-nos a ser humanos, a ordenar o caos de nossa psiquê, a compreender melhor a organização de nossa sociedade e o nosso lugar como sujeito dentro da comunidade a qual pertencemos.

          Porque a palavra é ideologia, o que se diz revela o que se pensa e de onde se pensa, “as declarações”, escreve Mikhail Bakhtin, “são a arena de uma luta desesperada com a palavra do outro em todas as esferas da vida e da criação ideológica”, e complementa afirmando que “todo ato essencial [do homem social] é interpretado ideologicamente pela palavra ou diretamente encarnado nela”ii.

             Desta forma, as obras de arte voltam-se para dor, para o sofrimento, pois um humano só pode ser conhecido por outro ser humano através deste mesmo sofrimento. Por isso, como ensina o mestre Antonio Candidoiii, a literatura, ao mergulhar na radicalidade do ser, confirma em nós a nossa humanidade.

            Na alegria, no prazer, não somos compreendidos, não há amigos de verdade nestes momentos, porque neles há só solidão. Compaixão e empatia existem apenas quando nos colocamos no lugar do outro, tentamos entender a sua dor, e a arte, ao colocar-nos no lugar das personagens, dentro de suas mentes, ensina-nos a nos colocar de outras pessoas, tentar pensar como elas.

           As Humanidades, portanto, mostram-nos como questionar o mundo que nos envolve, dissolver as certezas e procurar o nosso próprio caminho, mas, acima de tudo, como ser um ser humano melhor, tanto como pessoa – organizando a nossa alma – quanto como cidadão, desvendando-nos a forma de interagir-nos com os outros.

i A fala de Paulo Leminski sobre a poesia pode ser ouvida aqui: .

ii BAKHTIN, Mikhail. A pessoa que fala no romance. In: -----. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et alli. São Paulo, HUCITEC, 1988.


iii CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: -----. Vários escritos. 3 ed. rev. e ampl. São Paulo: Duas Cidades, 1995.

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