Eu estive aqui. Eu estive aqui por oito anos, aqui vivi quase toda a década de 1990, todo o meu ensino fundamental. Se, de certa forma, a maior parte de minha formação intelectual se deu no ensino médio, aqui se deu minha formação emocional. Aqui foi onde ouvi pela primeira vez a palavra "Marx", também foi aqui, neste colégio Arquidiocesano, que fiz minha primeira comunhão e tive como professora uma freira que destruiu todo o meu pavor de Céu e Inferno: "Céu e Inferno são estados da alma."
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Eu estive aqui. Nos meus sonhos ainda me vejo criança na mesma sala de aula, desejando escalar um andaime vermelho que passou um ano inteiro defronte a classe. Classe no térreo em que escrevi o meu primeiro poema (um acróstico bastante elogiado) para uma aula de redação da 6ª série (atual 7º ano).
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Eu estive aqui. E as árvores centenárias sob as quais brincava e sorria quando menino não me parecem tão enormes quanto na minha memória... Então me resta a certeza que a memória está certa, os olhos errados.
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Eu estive aqui. Nesta sala. Atrás desta porta ora trancada se deu o momento mais importante da minha vida. Toda os meus segundos se resumem ao que ocorreu atrás desta porta, numa manhã de terça-feira, durante uma aula de Língua Portuguesa no segundo horário, uma aula chatíssima de análise sintática de períodos compostos por subordinação. Era uma sétima série, atual oitavo ano, e da minha janela no primeiro andar, dava para ver os campos de futebol.
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Folheando a gramática, tentando fugir dentro da minha imaginação daquele infortúnio de reduzidas de gerúndio e de infinitivo, que me deparei com a lição de verbos. Naquele tempo, as aulas de língua portuguesa tentavam se modernizar, viver a partir do texto, mas era ainda só uma tentativa, e todo capítulo começava com um poema. O poema de "Verbo" era "José", de Carlos Drummond de Andrade - provavelmente para falar de subjuntivo -. E qual não fora meu impacto, qual não fora minha dor!
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O resto do dia passei lendo e relendo aquele poema, li outros, TODOS do livro, não saí para o intervalo, não visitei a biblioteca como sempre fazia para devorar os livros que lá havia. Apenas li, li "José". "José" era eu, era minha vida inteira, meu presente, meu passado e, acima de tudo, o meu futuro. Minha vida se resume à primeira vez que li "José".
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Naquele mesmo dia, escrevi o meu primeiro poema (agora de verdade, sem mandado de professora). E fiz um desenho. Na verdade foram dois poemas e dois desenhos (um dos textos era em inglês). Desenhei porque ainda não entendia direito a função da imagem poética (e a estruturação dos versos) e no livro - não me esquecerei jamais -, todo poema vinha conjugado com uma bela imagem, o de "José" era de um homem de meia idade de costas, caminhando sobre uma relva verde sob um céu rosáceo.
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Por muitos anos ainda guardei a relíquia da gramática como um memento do momento. Eu não poderia saber, mas eu já sabia que estava condenado. Condenado como o menino calado de poucos amigos, como o jovem calado de poucos amigos, o homem calado preso ao convívio familiar e trabalhista que precisaria escrever, escrever sempre, e muito, quase nunca algo bom, para compensar nesta fala dura do papel a frustração de não dizer o seu íntimo.
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Por causa de uma aula chatíssima de orações subordinadas reduzidas de gerúndio e infinitivo eu fui condenada a ensinar, pelo resto de minha vida, orações subordinadas reduzidas de infinitivo e gerúndio.
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Mas foi, principalmente por causa destes professores que me tornei o professor que sou.
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Muito mais do que um conteudista, mas alguém com paixão com quem se vive e e se convive. Todos amavam esta família, a família que eu sou. Se muitos alunos me dizem que sou um ótimo professor, se alguns me falam que eu sou péssimo, e se outros tantos me dizem que eu sou o melhor que já tiveram, "o melhor professor do mundo", é que eles não sabem a verdade: Eu sou um imitador; sou um imitador de todos estes maravilhosos professores e professoras que amaram tanto o que fizeram e amaram a família que construíram dentro dos muros desta escola.
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Eu despejo para eles, apenas uma fração da paixão em que fui banhado.
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Pio XII, muito obrigado.
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02/12/2017 (vinte anos depois de minha saída).