Eu tenho tido um pesadelo recorrente. Às vezes, acordo de madrugada sem sono, caçando-o por todos os lados da cama antes que o pesadelo me reencontre. Mas, já perdi as esperanças de jamais me acordar.
Como foi que me perdi dos meus projetos de mim mesmo e acabei me prendendo a esta cama que carrego por todas as esquinas? Nem no emprego me abandono, pelo contrário, me sinto um caramujo neste meu pesadelo recorrente.
Às vezes, eu me lembro de você. Nas esquinas em que me escondo do meu pesadelo. Não me lembro direito, no entanto, de verdade. Na madrugada, enquanto você esvaziou a cama, eu, fantasma, só sobrevivo naquele espaço incerto entre o pesadelo e a insônia.
Como foi que me perdi dos meus pedaços de mim mesmo enquanto você esvaziava a cama? Tenho tido um pesadelo indecente. Quase nunca me lembro deles, mas tenho certeza que são os mesmos. Só podem, só devem, soterrados nesta concha de pele que chamo emprego.
Quando você foi embora, descobri que tenho tido um pesadelo irremorrente. Nunca soube exato como eu deveria te chamar. Eu só deitava e você lá estava como a sombra do meu fantasma. E, na casca de meu emprego, só sobra a secura de sua ausência.
Quando acordo, tenho esta impressão estranha de sangue nas mãos. Não sei mais exatamente o que eu deixei matar ou que me levou a morrer. Talvez este pesadelo de emprego de casca tão recorrente quanto a cama de um caramujo me confunda e, entre sombras, luzes e fantasmagorias, eu acabe, como num caleidoscópio psicodélico, vendo você em esquinas de camas em que nunca durmo.
Como você não estivesse aqui na noite passada, acreditei poder rever meus sonhos: ledos pesadelos, lesos enganos. Banhado de sangue, me escondi desta tua ausência nas roupas que acho que encontrei como cascas esfareladas de caramujos – enormes, grotescos, flácidos, gosmentos – que descobrimos nos cantos dos empregos, presos às paredes, deixando rastros brilhantes dos próprios fluidos, macilentos, mostrando os caminhos por onde fugimos.
Caramujos e lesmas eram alegorias típicas de manuscritos medievais, de bíblias iluminadas, enfrentados por cavaleiros completamente armados, montados nos seus dragões. Ora representavam facções políticas contrárias, ora representavam os pecados – os mesmos que montamos, e nos desmontam –. Que outros inimigos teríamos se não estes, que devem ser cópias sagradas das mesmas fúrias? Você me disse. Você me disse isso. Tenho certeza. Lembro muito bem. Quase.
Quando esta noite despertei, carregado destes pesadelos teus que nunca me abandonaram, fiquei me procurando no teu vácuo desta cama que nos fora tão ingrata, sem que eu pudesse nunca saber quanto do nosso sangue esta sombra maldita que você chamava, tão injustamente, de ciúme, deixou espalhado no lençol magro que mal nos cobria nos nossos giros intergalácticos de colchões e espaços.
Agora, de dia, finjo te desconhecer. Todos sabem da mentira. Todos sabem, parece-me certo neste instante, que todos nos sabiam. Me parece certo neste momento, que todos sabem do sangue escondido na minha casca de caramujo. Aqui, onde me disfarço, não mais me esconde ao sol limpo. De quem é este carmim que venho registrando tanto ultimamente?
Não como há quantos meses? Sempre fui o parasita de nós, sempre fui o inimigo quando estávamos a sós. Sempre fui a mentira presa na tua voz. Jamais conheci teus pais, tuas avós. Só o silêncio destes pesadelos recorrentes fingiram que estão presentes. Fingimos demais ambos, amedrontados do futuro, mal saboreávamos o presente. Como fica quem fica só? Como continua quem não se desmancha numa cachoeira vermelha? Como fica quem carrega consigo seu próprio esconderijo?
Sem formas para me desencanar de tantas ambiguidades, vou vendo o meu casco refletido no teu rosto disposto por todos os rostos presentes. Meu lençol deixou de ser fuga quando você sumiu, os pesadelos apareceram, te procurei, te busquei, te persegui. Agora, deste rubro, me sinto tão fantasiado, como o batom fantasma de um palhaço estridente de um melodramático teatral italiano ou de uma tragédia bufa do bardo bretão.
Não tinha medo até descobrir que também cultivo os meus pesadelos, os nossos. Não tinha medo até perceber que me perder de ti não é o mesmo que me perder em ti. O meu pensar falhou e te procurei nestes encontros ausentes de nós.
Quando ergui este altar de teu rosto, todos os sacrifícios que fiz se perderam e você passou a ser minha divindade. Se era amor, como poderia dizer nestes escondidos em que nos encontrávamos? Mas, agora, é tudo adoração desde que os pesadelos se tornaram presentes na ausência tua desta cama tão dura de lençóis tão finos.
Eu fui te esquecendo, teu nome endureceu nas minhas costas como casulo, me obrigando a carregar tua tão pesada lembrança nos ombros como um gigante sôfrego, Sísifo trôpego, trapaceiro louco.
Só saber o sabor do teu coração que trouxe verdade para o meu e paz para minha vida. Só quando tornei permanente a ausência tua de mim, é que pude entender a verdade da vergonha minha de tua presença. Só quando estes teus lábios aqui se tornaram frios e duros é que percebi que não era só um desejo louco, uma fantasia estranha, um brinquedo de experiência única que virou feitiçaria de todos os nossos detalhes. Se me desconhecia profundamente antes de teu adeus, agora me vejo um fanático desiludido diante desta ara de tua cara, da imagem do paraíso que destruímos.
Foi tudo culpa tua, sim!
Era para ser um experimento, sem culpa, só desejo. Mas, não, você me fez sentir, queimar-me ao sol fora de minha guarita e, então, você se foi!
Para onde? A cama vazia não te denuncia, mas a mim. Tenho tido um pesadelo recorrente: um sonho carmim em que a cama é Teu Templo e eu, a Vossa Santidade! Tu, minha eterna divindade que como todo deus, toda deusa, só se faz certo e lógico no Seu Mistério, na impresença de Teus atos que tornam possíveis todos os milagres invisíveis. Como Te adorei em segredo e agora torno secreto a Tua violência contra meus sonhos sinceros.
No emprego, todos perguntam Caramujo – só você percebeu além desta corcunda de tristeza que ergo – cadê? Quem, o quê? Todos te procuram, mas eu me escondo dos fatos, como se nunca tivéssemos sido amigos, amantes, unidos. O teu corpo sempre me lembrou de uma deusa, mas teu olhar de um pai terrível. Queria me encontrar pleno no primeiro para tentar fugir escondido do segundo. Por que você tinha que exigir mais de mim do que eu mesmo estava disposto a proporcionar? Por que ter que escolher entre a mentira e o nada? A culpa é tua, sim! A cama agora esvaziada. A minha alma agora atormentada. A tua ausência tão corporificada.
Só encontrei no pesadelo a vertigem desta verdade: se você, ao se apartar tanto de mim, partiu, assim, tanto minha fé na realidade, que culpa tenho? Como poderia ficar em tua ausência sem o cheiro teu bordado nos nossos lençóis, sem tais promessas doces de reencontros jamais prometidos, sempre surpreendidos pela infalibilidade de nossos misteriosos laços?
O que me dói é saber que talvez você gozasse mais a surdina do que meu corpo. Que talvez você preferisse mais o meu silêncio do que nossos gemidos. E, por isso mesmo, é que você se foi. O mister da carne é a sua própria glória, a apoteose da vida, mas só a palavra que não se permanece secreta é sagrada. Tão impuros e pecaminosos somos nós!
Como pude te desejar tanto e te deixar tanto, sem ao menos te absorver pela boca? Te chuparia tão vigorosamente até que você caísse corpo a dentro dos meus lábios, como Júpiter dilacerando a própria memória numa tentativa inútil de sempre se lembrar destes amores que sumimos em gozo!
E agora, eu já não posso me revelar, já vieram até ao emprego em tua busca, todos me apontaram como íntimos, todos tinham estes olhos toscos, tronchos, tresloucados para mim. E eu só tinha o altar de tua cabeça exposta na minha cama – meu mais secreto segredo, meu mais misterioso mistério, meu mais grotesco rastro de lesma –. Só quando estava a sós contigo esta casca se desfazia, a corcunda se desmanchava, ereto eu todo ficava – teu sumo sacerdote –, você que foi meu templo único, minha igreja sagrada, minha fé de escolha, minha religião fanática, você, minha febre, meu sonho, minha sombra, meu fantasma meu pesadelo recorrente de lábios e sangue de solidão e abandono de caos sem sono de gozo incorpóreo fantasmagoria fantasia jogo de berço e pia desejos ardentes de cavaleiros armados de couraças e de paus minha relíquia draconiana entre minhas pernas tuas asas abertas escancaradas teus rosnados teus urros tuas baforadas flamejantes que eu sou desde que te derramei no meu sangue? O que eu sou agora quando, às vezes, este manto de ambiguidades se desfaz? O que eu sou, agora? O teu lixo abandonado? O teu prazer escondido? A tua mentira sórdida?
Não aceito isso!
Nunca aceitarei – aceitaria!
Jamais!
Que tipo de macholixo – que termo terrível você inventou só para mim! – eu seria se permitisse? Pelo contrário! Ou você era minha posse ou meu pesadelo, destes que jamais deixam de nos perturbar para sempre. Para sempre nos escondendo dos lençóis vazios da cama, nas esquinas ainda por virar, nos altares que levantamos para nos desaparecer! Que igreja já se fundou sem sacrifícios? Orfeu afundando Eurídice no inferno; Caim enterrando vivo seu irmão para fundar Roma; como Rebeca que, comendo areia e cal, canibalizou os próprios pais.
Que deus nunca ordenou a morte de milhões? Javé exigindo o sangue dos cananitas ainda bebês; Quetzalcóatl pedindo corações pulsantes para te manter, meu Sol, dentro de mim ainda queimante. Que tipo de monstro sem amor não idolatra até após a morte, como uma Beatriz divinizada, o ser amado, o ser sagrado, a racionalidade final e cruel que, impiedosa, dá fundamento a tudo o que é profano?
Se te amei? Devo sim ter amado, em algum ponto, entre o meu tesão e tua idolatria. De certo, no entanto, nunca admirei a pessoa que você foi, nunca reconheci nada teu além de meu próprio prazer. É por isso que agora te adoro, tu já ausente, porque só são santos os mártires e, por mim, tiveste tua hagiografia composta tão habilidosamente.
És o meu círculo, meu concubinato, minha altura sem domínio, sem alvoroço, meu gozo sem fundo, meu poço tão profundo, meu esquecimento de dia, meu tributo, monumento na cama, meu lençol tão seco e endurecido de tão encharcado de tuas águas que me banham, banham, banham: brejo dos corpos.
Você é tudo o que temia. Tenho tido este pesadelo tão frequente. Não sei ao certo se você lá está, mas é sempre sobre você que é minha penúria e minha certeza ambígua perante ou dúvidas; o horror de toda madrugada idolatrada ao teu lado nesta cama vazia, solitários meus olhos fitam os teus tão vazios quantos lençóis estranhos que nossas entranhas amarram, que nossos indícios apagam, que nossas comiserações guardam.
Nunca te busquei além de mim. Talvez, por isso, eu tenha guardado tanta bagagem, tanta bobagem, tanta ternura que de tão tamanha, tão tremenda, terrível e horrenda, irrompeu de teu corpo. Foi de carinho e de ternura sim, que te machuquei. Que doutra forma? Estavas um sonho branco na tua despedida e, hoje, estorvas meus pesadelos vermelhos.
Foi tão não intencional, tão passional! Que este meu carinho tomou forma de fúria que me esqueci. Como poderia lembrar de ti se tu te escondes de mim nas esquinas onde não te buscarei. De lá foi que te busquei e te resguardei dos comentários verdadeiros que fariam se nos vissem juntos. Todos já comentam no emprego, fazem piada dos rastros que deixamos pelas paredes das áreas escusas quando subíamos por ela, agarrados nos tremores dos nossos corpos que, como lesmas, adormeciam flácidos um no outro grudados, inseparáveis. Mas, eu que tinha casca e precisava me esconder de minha verdade eterna: Tu.
Por que você teve que não dizer adeus?
Só se virou as costas e se foi. De uma autonomia tão completa como se de mim não precisasse. Era para ter sido tudo um só brinquedo, mas você destruiu tudo com essa sua perfeição tão elevada!
Que é deste pesadelo ininterrupto que desconheço?
Quando finalmente nos descobrirem, o que falarei de você? Como aceitarão ou acreditarão neste louvor tão pleno que dediquei a você? Que só agora você é meu único e santo amor, mais, muito mais do que amor, idolatria plena, minha fé igreja trindade santa e satã. Como me esconderei se o que mais quero é me nos revelar? Me trair a todo instante proclamando a tua religião, apresentando o teu altar que fiz com tanto esmero para que todos também lhe adorem, que todos saibam teu nome, tua grandeza, teu bem-estar!
Nunca me entregarei senão a teu gozo. Minha adoração sincera, meu corpo fora de mim, fora de si, fora de razão. Que saibam todos, que me ouçam gritar desta caverna tão profunda de ossos e couro, tenho uma única certeza, são e mística: Vós!
Batem a porta, parto. Me desprezaste, divindade de meu coração, este teu busto rubro adornando minha cama que nunca fosse nossa. Esta máscara marmórea lançando carmim sobre meus lençóis.
Quero fugir, por onde? Pela janela pela qual entraste em meu coração? Pelo esgoto pelo qual deixei sair meus pecados mais puros? Pelos quadros pintados nas paredes de nossos fluidos, mais teus agora, vermelhos, vermelhos, do que meus, por onde ficaram teus odores, nossos amores, meu crime mais fabuloso? Por onde fugir, por que fugir, para onde fugir se não posso me separar de você?
Para onde vá, lá estarás, minha divindade, minha Aserá, meu Rudá, minha Ísis Afrodite Ishtar Freya Oxum, meu Eros Aizen, meu limiar! Tu, carrego comigo, no meu íntimo, no meu estômago, teu coração. Tua face, meu altar de adoração!
Batem a porta! Meus verdugos! Não teus heróis que chegam atrasados no nosso amor, no teu martírio e tua ascensão, mas minha Nêmesis, que me querem roubar de tua tão santa presença! Do meu banho em teu tão sacro sangue!
Quem me caboetou? Malditos invejosos, ciumentos do trabalho! Tanto fizemos para apagar as pegadas, as marcas, as maçãs de nosso amor! E ainda assim, me olhavam de lado, me apontavam narizes, me reduziam ao teu capacho, teu miserável, teu esmoler de migalhas de carinho!
Mas quanto mesmo recebi e o tanto que te roubei?
Batem a porta!
Não deixo entrar!
Teu templo, teu santuário, teu altar!
Tudo tão somente meu!
Batem a porta! Arrombam a porta! Não vão entrar!
Não vão!
Vão entrar!
Meu castigo foi unicamente te perder, me prender somente ao teu gosto, ao teu sabor!
Meus carrascos e teus caboetas não me levarão, não me terão!
Horrorizados, espiam com olhos ímpios teu altar! Me apontam dedos armas balas palavras impropérios dejetos!
Minha defesa, meu grito, é estar contigo, meu amor, minha vida! É tua, é tua! Estou contigo! Enfrento meus desafetos, meus monstros, me jogo contra esses iconoclastas, a mesma faca que te imolei no meu fulgor fiel religioso patriótico! Me apontam dedos palavras impropérios dejetos balas armas!
Mas agora me encontro contigo, para sempre unidos uníssonos!
Como assim me rejeitas? Eu que te transfigurei como no Monte Tabor! Como ousas dizer não a mim, teu amante mais fiel?!
Já me disseras não uma vez em vida, mas não agora? Nunca aceitarei este não, jamais aceitaria! Como ousas ainda me rejeitar?
Eu aqui, deitado na rede deste inferno, congelado pelo bafo de mil milhões de demônios, transpassado pela tua rejeição mil bilhões de vezes! Que punição, que horror, que frialdade mais severa!
Meu amor, meu altar, minha divindade, meu Aizen Eros Rudá, minha Freya Oxum Aserá Ísis Ishtar Afrodite, minha tenda de peregrinação, meu doce penar!
Se não te dei a paz em vida, por que recusas meu gozo nesta despedida?
Mas ainda assim, não te levaram de mim, não te resgataram de minhas mãos, de minha navalha de Abrão, meu doce cordeiro!
Mas ainda assim, não me levaram de ti, não me agarraram pelas mãos, não enfrentarei os olhos e línguas maldazes me caluniando, negando meu amor, minha adoração! Não enfrentarei as penas dos homens, não me dirão vejam aquele Caramujo, seu sebo devorou a carne de nossa admiração.
Só Tu viste para além desta casca, mas não Te deixei sair de meus tentáculos! Quebraste esta carapaça dura, vazia e disforme, esta corcunda erigiste, esta verdade expuseste! Mas não viste para além deste corpo mole e flácido, para além de nós, dolichophalóides!
A casa vazia que rompeste, não era a minha solidão.
Não apenas.
A casa vazia que rompeste era de minha alma podre e tenebrosa. Entraste, nume de amor, como luz neste amplidão de vácuo e nada e retiraste daqui o que há de mais distorcido!
Te dei meu amor, te tirei tua existência!
Continuaste em mim, em Espírito Santo, minha Presença Shekhinah! E te levei para o meu inferno, para sempre lembrada a me desprezar!
Para sempre em desprezo me relembrar…