CANTO I (Do Vírus)
É 20
e o concreto não foi derretido
ainda
obrigados que estamos
a trancar-nos em casa
os céus e as águas limparam-se
quase que instantaneamente
Mas nos ordenaram sujar
por dinheiro
fazer a maquinaria rodar
por dinheiro
o povo todo tem fome
por dinheiro
Neste tempo desgovernado
por “vírus e vermes”
desencontrado de sentido
é-nos negado o abraço
o aconchego
o afeto
o amor
Mas tanto dinheiro te comanda
ou a fome te ordena
e o concreto não foi ainda
derretido
É 20,
acabaram-se as certezas do ser
e tantos e quantos se apegam
por enquanto
buscando algum sentido
na não-esfericidade bíblica do globo terrestre
É 20
e odiamos mais,
graças a Deus!
Tão bem que somos treinados e doutrinados
a acusar saberes de doutrinação
e a Odiar tudo que não nos foi profetizado
É 20,
tenho quase certeza.
Meu corpo dorme 15 horas por dia
para escapar desta vida desgovernada
por vermes e vírus
Tem tempestade de trovões
quando deveríamos estar isolados sem aconchego
sem afeto
sem abraço
sem amor
É 20,
tenho quase certeza
que morreremos
ou pelo vírus
ou pelos vermes
que nos aquartelam
Me falaram
no entanto
que é quase inútil se revoltar
e eu só tenho fúria e indignação
por desprezo
meu corpo dorme 15 horas por dia
para esconder-se da vida
E ainda
não foi derretido o concreto
tenho quase certeza
CANTO II (Dos Vermes)
Há fome pelos esgotos da vida
há mortos nas valas abertas
de caixões fechados
e, por enquanto,
nem todos descansaremos ainda
As ruas deveriam estar vazias,
mas estão inchadas
como tumores purulentos
de pessoas que só usam as máscaras
do dia a dia
É 20,
e somos presididos
por uma faca e uma mamadeira peniana
(tanta vergonha mal cabem num planalto)
As pessoas deveriam estar indignadas
furiosas
desesperadas
Mas, mal há medo
porque há fome
Qual certeza ainda temos
e compartilhamos?
Na segunda vinda de Cristo
onde o crucificaremos?
E este concreto que não derrete?
Nenhuma profecia mais
se fará presente?
Por que não se dissolve
meu ódio,
este vírus?
É 20,
e as epopeias se desmancharam
em transmissões ao vivo
porque não podem tomar a rua
e se moldarem à vida do povo
E, por isso, tenho quase certeza
que o concreto não se derreterá:
só as palavras dissolvem o real
só os gritos abalam os palácios
como Josué bêbado dançando revoltado
ao redor dos muros de Jericó
Não me castiguem!,
o que foi que lhes prometi?
É 20,
e todos os épicos se transmitem
como virais
como uma subcelebridade da rede
bêbada na sua bacanal
entoando o zeitgeist da minha geração:
“foda-se a vida!”
Uma dezena de milhar de mortos
“e daí?”
É 20,
e somos comandados por facas e fascistas
e mentiras e mamadeiras
e vírus e vermes
E “nem todos libertaram-se ainda”
porque “as pessoas libertam-se em comunhão”
Donde vem os vírus
que nos enganam
se não de um beco escuro
de um pântano da Virgínia?
É 20,
ainda
tenho quase certeza
Não estamos nos tateando nos escuros,
estamos apenas nos odiando
e transmitindo ao vivo
pelas redes sociais
porque dilaceramos todas as redes comunitárias
e nos petrificamos
em propagandas em modo lídio
de que somos ilhas
eu não acredito
não há nenhum fragmento
no asfalto
tanto ódio disperso
nas individualidades
que nos tornamos estéreis
e as paredes de concreto
continuam mais duras
que as nossas palavras
Nos ensinaram a crer no ódio
e odiamos tantas coisas
diferentes e várias e desiguais
que endeusamos os fariseus
É 20,
e ainda estamos a escolher a tortura correta
para a segunda vinda de Cristo
Não me cansem!,
o que foi que lhes profetizei?
Jamais beijarei a mão
suja do sangue dos nossos filhos!
Durmo 15 horas por dia
e é 20 ainda!
Quantas horas terão o dia
para ser esquecido?
Meu corpo ainda não entendeu
a falta de afeto
do amor
do abraço
do aconchego
É 20,
ainda
é triste
quase certeza eu tenho
que nos perdemos
em alguma esquina do caminho
da humanidade
por causa de uma placa bonita
por causa de uma promessa vazia
por causa de uma negativa à vida
Minha geração nasceu errada:
nos ofereceram empacotado
o jogo da vida
e aceitamos
e acreditamos
que poderíamos Vencer
CANTO III (Da Festa do Mercado)
É 20
e o concerto do ódio ainda
não foi detido
Dez mil mortos no país
churrasquinho e jet ski
a fome come na periferia
setenta milhões de invisíveis
que o onipotente Mercado finalmente via
mastigando sonhos como cacos de vidro
bebendo vinho e injetando cloroquina
como no DOPS se engolia
a tubaína
e daí?
foda-se a vida!
CANTO IV (Do Templo Na Galileia)
É 20
e o Estado Armado sobe o morro para brincar
João Pedro
João Rocha
brincando subiram anjos
o Estado é daltônico,
mas sabe caçar bem
É 20
e o Estado ainda não ruiu
sob o peso de milhões de jovens joões
a sua dentadura não caiu
porque adora moer carne
Há quem só falou sob tortura
há quem só calou sobre tortura
É 20
e ainda negam os corpos
negros
negras
negres
o Estado Armado é uma fábrica
de corpos adestrados
amolecidos
amedrontados
entorpecidos
fragilizados
esquecidos
domesticados
Quando subir a favela
favor
não esquecer o fuzil
a máscara a bíblia a cloroquina
e a vela
Quando subir a torre do condomínio
conduza
devagar não traga o vírus
bata continência nestes sacros
domínios
Quando a marcha erguer o braço
ou atirar com os dedos
em sinal de oração
jamais se esqueça de embelezar
a entrada de todo morro
com a placa sisuda:
“O trabalho liberta,
Brasilien über alles!”
Quando as lágrimas descerem
lembrarás que não há país como este,
ama-o com fé e orgulho
ou o deixe
É 20
e a Justiça vendada
tem um olfato apurado miserável
de longe distingue bem
a massa cheirosa e o povo
e o Estado Armado e daltônico
comprou uma luneta
e agora fica
perversamente
pornograficamente
só na cabecinha
só na cabecinha
Sobre João Pedro
Sobre João Rocha
Jesus
erguerá sua
Igreja?
É 20
e ainda não decidimos
quantas chibatadas
serão cobradas
para quem deu pão
aos flagelados da fome
quanto vinagre
será derramado
na boca de quem tem sede
de justiça
É 20
e eu não me esqueço
que o meu inimigo
tem todas as armas
e convenceu A MIM
que é imoral se revoltar
Como torres de flautas
vamos tocando dançando poetando
evitando
que o Céu caia
É 20
e o concreto de ódio ainda
não foi derretido
Nazaré não era mais
do que um cemitério
na Galileia
Nazaré não era mais
do que a bocada mais suja
de uma favela da periferia
O Gueto dos guetos
onde um sem teto
sem terra
sem templo
sem pai
nasceu preto
pobre
politizado
Mas é daltônico o Estado Armado
e a Justiça cega tem ótimo olfato
Foi dentro de casa
brincando com os primos
Foi procurando pipa
pra voar nas vielas
Sobre qual Pedro, sobre qual Rocha
será erguida a Igreja da favela?
a Igreja de quem tem fome de pão
sede de justiça
chibata na mão
e o dia da ira
contra todos os fariseus
escribas
legionários
vendilhões
Nunca te agasalhei
nem te dei abrigo
mas enquanto os velhos morrerem
e os jovens trabalharem
o meu lucro engrandece o Senhor
Temos que vender o Brasil
e prender os adversários
pôr um general sem dentário
Em cada canto do gabinete
É 20,
porra!,
não faço milagre
mas sou o Messias
é para morrer trinta mil
patriotas do Brasil
conhecereis a minha verdade
e ela vos libertará
da consciência
Sem consciência, somos só corpos dóceis
imbecilizados
sem ira
irrevoltáveis
incapacitados
de quebrar o chão, derrubar o céu
fazer chover concreto
Não há amor onde há fome
não se acha justiça onde não se acha amor
eu tenho quase certeza
que todos dormem 15 horas por dia
para embrutecer a tristeza
cinco horas na cama
cinco horas no coletivo
cinco horas batendo o cartão
A epopeia foi esmagada pelo microvídeo
justo agora que ela poderia
ser revolucionária
infernizando Wall Street
castigando na praça os inimigos
os traidores
com as mãos empapadas de nosso sangue
com fúria e dor
Feliz 20
para a minha terra
suja de trevas
esta terra que se chama João Pedro
João Rocha
Nós, “obituários” vivos dos dias presentes
sentimos nas costas
o sangue de nossos filhos
a fome de nossos irmãos
a tosse seca de nossas avós
CANTO V (A Canção Do Ferro)
Sejamos leves,
pelo Amor de deus!
No que adianta armar
alguém que não se revolta?
O poder é masturbatório,
mas se cansa de carregar desaparecidos
para cemitérios de perus
e paraquedistas
de botas de concreto
para as pontas das praias
O Estado Armado e de lunetas
enxerga bens
a Justiça vendada cheia de togas
cheira bens
mas no Templo do morro da Galileia
só se reza em cemitérios
Não haverá nada
além de fome e dinheiro
e queremos mais
muito mais
Eis os heróis da democracia
os cidadãos de bens
300 canalhas
e 1 fornalha
e 2 dezenas de milhar de mortos
nem aviões nem helicópteros de cocaína
carregaram tanta joalheria
tantos príncipes herdeiros
de monarquias extintas
tantos filhos pródigos
de um governo sem instinto
tantos influenciadores digitais
de notícias sem fatos
tanta filosofia invertida de um astrólogo sem estrela
E eu que durmo 15 horas por dia
de modo que o tempo não passa
pula de 3 em 3 dias?
já se aproxima a minha execução
mas não chegou meu julgamento
ainda
tenho quase certeza
nesta democracia elitista
que intubou Sócrates
No que adianta amar
alguém que não se revolta?
CANTO VI (Vislumbra-se O Herói)
É 20
e finalmente
estamos botando o fogo do inferno
no Céu e nos prédios
Outro de nós nos foi assassinado
pelo Estado Armado
com o joelho sufocado
como Abrão acariciando o próprio filho
Todos os nossos gigantes
gentis
sentirão o peso do teu coturno
na garganta
quem poderá respirar?
Somente quando
as casas brancas
alaranjarem
em chamas
teremos
paz
Enterramos nossos vizinhos
– sejam pacíficos
enterramos nossos amigos
– sejam pacíficos
enterramos nossos heróis
– sejam pacíficos
enterramos nossos irmãos
– sejam pacíficos
enterramos nossos pais
– sejam pacíficos
enterramos nossos filhos
– sejam pacíficos
Só é possível ser pacífico
no enterro
do nosso inimigo
Eu vi
eu vi
o fogo de pentecostes descer
e queimar
o asfalto
o fascismo
e a desesperança
Eu vi
eu vi
os militares protegerem
os fascistas
os amotinados do Ceará
cavalgando no planalto
Eu vi
eu vi
a marcha das tochas e das máscaras brancas
afogando-se em leite da intolerância
É uma manada
pequena
barulhenta
militarizada
É 20
e cento e quarenta e oito milhões
de seres humanos vos odeia
nem todos perceberam ainda
muitos têm fome
e onde há fome
há medo
mas cento e quarenta e oito milhões
de seres humanos vos condena
Suas tochas
e suas cruzes em chamas
e suas máscaras fajutas
assustam a quem?
Eu vi
eu vi
o fogo de pentecostes descer
e queimar
e tremer
as mansões do asfalto
os corações dos supremacistas
as solidões dos desesperados
Quando o Nazareno voltar
será asfixiado
crucificado pelos cassetetes
nos asfaltos
Crescemos atirados pelos elevadores da vida
sempre pro chão
sempre pro chão
pelos elevadores da vida
sempre estamos despencando
CANTO VII (Do Partido)
É 20
e quatro dezenas de milhar de mortos
de famílias fragmentadas
de almas perdidas
fazem arrotar de alegria fartar
de ruína
os Véios e os seus robôs
de gripezinhas e fraquejadas
vão se erguendo vossos partidos!
Tu que veneras os nossos inimigos
vossos destinos
é a praça de Milão!
A PAX de Roma
não nos interessa
não há paz nos cemitérios
só silêncios
quem tolera
quem protege o opressor
pratica a chacina
limpando as mãos
Marx não sobe o Morro
porque de luta de classes
a favela sabe mais
que o doutor
CANTO VIII (Da Bomba)
Uma centena de milhar de mortos
minha cidade inteira assassinada
quase todas as cidades do Brasil
assassinadas
uma centena de milhar de almas sonhos amores amigos famílias destinos
destroçadas como por um míssil nuclear
em Beirute
um berço da humana gente
uma bomba delinquente
balançou as estruturas e fez chorar
até os barcos fenícios de cedro
até na Bahia enterrados
Fênix púrpura
bomba racista
além dos Vírus, os Vermes
uma centena de milhar de mortos
é 20,
este é o novo normal
normal que o microvídeo flagra racistas
e os aplaude
o normal de sempre: branco
obeso
básico
babaca
o normal de sempre: rico de três
de quatro gerações
de heranças
de capitanias hereditárias
de burrice acumulada
de diplomas comprados
de empresas proprietários
mantidas pelo trabalho de tantas
outras gentes
tudo que têm “trabalhou ou herdou?”
É 20,
diante de tudo isso
o concreto ficou ainda mais duro
o fogo não o derreteu
a fúria não o dissipou
a Fala não se fez Carne
e Ele, temendo a Cruz, não veio
É 20,
falamos da utopia do concreto
falamos da rebeldia das massas
falamos da autodeterminação dos povos
falamos até de poesia
falamos
falamos
falamos
obedecemos
o que adianta amar quem
não se revolta?
quem abraçará alguém
que não se conhece?
esta é a vontade do Ferro:
só na cabecinha! e Beirute caiu;
esta é a vontade do Ferro:
só na cabecinha! e subiram de novo o Morro;
esta é a vontade do Ferro:
só na cabecinha que pedalada é mais grave que genocídio
esta é a vontade do Ferro
mas
não é a vontade do Fogo
pentecostes descerá
todo o concreto deixará de ser líquido
tudo voltará a ter certeza
veremos as coisas como são
o concreto pelo concreto
então será vencido
mas quem tem fome
tem medo
quem tem medo não se revolta
quem não se revolta
não merece amor
?
É 20,
bom dia mundo novo
que não mais se alimenta apenas
da carne mais escura
mas de todo pus que sai da boca do Senhor
É 20,
todo o teu fogo já morreu!
CANTO IX (A Mãe Do Mundo)
O ano acabou
ou está nos acabando
os dias se atropelam feito
estradas
tortuosas
e nos perdemos nas esquinas
dos nadas
o show acabou
não há mais espetáculo para processar
queimamos tudo
tudo
toda a mata
toda criança
todos os nossos esforços
em
vão
sai a onça, o lobo, o macaco,
o tamanduá não nos salvará
da enchente de chamas,
nem o tatu, avô nosso,
nem o jacaré, nem o boto, nem as grandes cobras d’água,
sai o carcará, o gavião, o saci, a coruja
entra toda a boiada
toda a árvore sai
toda a soja
o milho
o arroz saem
exportation → plantation → fornication
tantas vidas
vêm
vão
não sobrou nada para alguém odiar
a não ser a humanidade
não odiamos mais as guerras
as fomes
a intolerância
a exploração
só odiamos as gentes
oh tempos
os satanases
em que nos tornamos
idolatrando nas Igrejas
caras de pau!
mamadeiras de pau
santas de pau
extraído ilegal
milhões vos recheiam
da prata dos cofres do povo
quinze vezes cinco é teu dízimo
quando todas as mães pretas
não tiverem mais pelo quê chorar
só assim então
sereis feliz
bem feliz
Magnata do ódio!
a ignomínia é o teu tesouro,
minhas lágrimas, o teu gozo;
minha ira, teu terror
Magnata do ódio!
todo óleo
que nos roubaste
será o combustível
de tua prisão
Magnata do ódio!
pode esperar sentado no teu púlpito
nós vamos lá te buscar
e toda lágrima inocente
cobrará o seu sal
Magnata do ódio!
pode avisar a tua claque
hoje podeis ter ainda o fuzil
Mas um dia as mães pretas
não salgarão o teu feijão
com a suavidade de suas lágrimas
mas com o peso do chumbo
que derramaste nos nossos filhos
Magnata do ódio!
pode avisar
hoje, nos banha
no frio da madrugada
e rouba nossos lençóis,
amanhã, frio serás tu
Magnata do ódio!
pode se preparar
hoje, quem ri no banquete,
se engasgará no nosso festim
Magnata do ódio!
o que irás dizer
quando batermos à porta?
“não lá pertencemos”?
a Terra toda é nossa
somos a humanidade
Magnata do ódio!
para onde fugirás,
onde não encontrará o teu inimigo?
o povo humano
CANTO X (Ódio)
É 20
Bayeux e Patos
Sapé e Santa Rita
Souza e Cabedelo e Cajazeira
Araçatuba, Ferraz de Vasconcelos, Santa Bárbara do Oeste, Nova Friburgo, Nossa Senhora do Socorro, Barra Mansa, Teresópolis, Araguaína, Guarapuava, Ibirité, Jaraguá do Sul, São José de Ribamar, Itapecerica da Serra, Francisco Morato, Linhares, Mesquita, Itu, Palhoça, Valparaíso de Goiás, Bragança Paulista, Timon, Pindamonhangaba, Poços de Caldas, Caxias, Maricá, Nilópolis, Teixeira de Freitas, São Caetano do Sul, Ilhéus
cada alma dessas terras está morta
quando eu me olho no espelho
eu sei
eu faço parte da multidão de assassinados
pelo individualismo barato
pelo prazer de poucos
pelo dinheiro de menos
E a cada mil pessoas numa rua
uma tomba
com os pulmões comidos
É 20
e me tiraram o direito divino de odiar
para não nos igualarmos
Preciso odiar
os fascistas, racistas, machistas, sexistas,
os teocratas, tecnocratas, plutocratas, escravocratas
as pratas, os hipócritas
e com as mais puras fúrias cristãs
com uma corda feito chibata
exercer minha dádiva sagrada
de punir-vos
Não me tirem o ódio santo!
Ai de vós, Senhores, se cairdes
em minhas mãos!
A vossa sacra misericórdia está guardada
igual ao que o burguês puritano Cromwell
guardou ao direito divino e hereditário.
Senhores de toda a Terra:
eu não vos amo;
nem vou ignorá-los.
A cobrança será feita,
estou aprendendo a contar
complexo feito banqueiro.
A cada lar tomado
a cada roçado queimado
a cada templo arrasado
é um grão a mais
em vossa campa.
Não temos medo
mas não somos burros
tudo o que nos resta além de sofrer
é lutar
Não me abandonem no ódio solitário!
Gostaria
e muito
que cada um que comemora
centenas de milhares de mortos
viesse à minha mão
como a um tribunal de crimes
de lesa-humanidade
a vossa misericórdia está guardada
Não me calei.
É 20
apenas
todo o concreto parecia rachar
todo o asfalto, derreter
todo a poluição, sumir
no entanto
a única coisa que rachou, derreteu, sumiu
foi minha esperança
nos homens.
As mulheres ainda hão de me salvar.
Não me deixem só remoendo tanto ódio!
Não caminhei
não me purifiquei
não fiquei sabendo
tantos de nós se perderam
ou o pulmão
ou o juízo
ou o coração
foram completamente comprometidos
plenamente
Não há santuário onde se esconder
não há abraço onde se encontrar
não há mais humanidade
Eis pois o nosso projeto
pós-20:
vamos inventar a humanidade
o que houve aqui não vogou:
não veio a enchente, ou as chamas,
ou o lobo ou o jaguar;
veio o que sempre vem nos matar:
a coroa
uma humanidade sem coroas
nem caras
de pessoas livres
porque não passam necessidades
de pessoas livres
porque mandam em si mesmas
e livres de mandar em ninguém
porque são o que nasceram para ser
e não precisam agir como tal
Não me lembrem de tanto ódio;
esse ódio é miasma amargo!
Eu quase me perdi
pois não tinha a ti
para guiar-me
grato por ouvir-me
grato por ler-me
grato por amar-me
talvez um dia
queride
nos encontraremos numa esquina
lembrarás de minhas palavras
“20 foi fel, foi foda ficar falando
contigo, te ouvindo.”
talvez tu me abraces
talvez me elogiando
talvez me agradecendo
porque eu não desisti
talvez seja inocência tua
Nós não desistimos
Sinta-se beijade por mim
eu te amo
não importam as circunstâncias
nós vencemos
desmascaramos a mentira dos Senhores:
só a mão humana
só as nossas mãos
produzem o mundo
só elas têm valor
e um dia seremos livres
e não haverá espaço nem tempo para odiar
os hipócritas,
os fascistas e os plutocratas
os machistas e os teocratas
os tecnocratas e os sexistas
os escravocratas e os racistas
as pratas
Nesta era irás me dizer
tua ira foi justa
nunca fora ódio
sempre foi e
sempre será
Humanismo
Se eu não me perdi
amade
é que vivo esta Utopia
é onde sempre estou
porque lá não posso chegar
só
se eu não me perdi,
não me arrependo.
É 20
e nos reveremos.
CANTO XI (O Lucro)
Era 20
e muita gente nem percebeu
que se tem lucro
tem lado
e não é o meu
O meu é o lado do trabalho
e das mãos limpas
Quem lacra lucra sim
nessa higienização catártica
de todas as opressões
no marketing mais colorido
da festa da liberdade
para quem pode pagar
Vós que esquecestes todas as dores
não andais comigo
Começamos nesta festa geral
do foda-se a vida
e terminamos no Réveillon
do “me intuba, porra!”
Esta é a minha geração
Tubaína
uma já velha geração de doutrina
na promessa de prazeres
que crescemos viciados
nas pílulas do imediato
Dinheiro é o único prazer
o único bem
a única certeza
deste mundo
e ele tem lado
e não é o meu
Vós que esquecestes a vida
não andais comigo
Era 20,
e já reivindiquei
o meu direito de voltar a odiar
quero odiar de modo puro
todos os opressores
carregar comigo esta mazela dolorosa
até que não haja
mais nenhum
oprimido sobre a Terra
Só assim, então, poderei perdoar
primeiramente a mim
Mas, enquanto eu não extirpar do humano
o desumano
que tipo de olhos terei
para os nossos filhos
Nós, da pior geração,
a geração que renegou a Utopia
não a que a combateu
não a que (acha) que venceu
nós somos o estágio final
da razão porca
O lucro nunca será nosso
contentem-se com a doutrina do conta-gotas
mas não seremos salvos
O lucro não perdoa
pois é divino
dez mil cairão à tua direita
mas o lucro não será atingido
Festas masturbatórias
em praias turísticas
tornou-se impossível
para o dono
a dona do púlpito
em seu bacanal mais lúcido
não fuzilar o próprio
marido-filho-genro
metralhado na virilha
para desentocar dos rabos
o lucro de merda cheia
Por que eu não te parei quando podia?
Por que eu não te traí quando queria?
Ah, vida, tu não me abandonaste
e eu quase te esqueci
CANTO XII (A Vida)
Foste minha parceira
Era 20,
mas estavas aqui
linda rameira
eu, impotente despossuído,
foste gentil com minha fraqueza
com minha franqueza
foste fiel
Derramei sobre ti a poesia mais doce
e as palavras mais feias
delas, deste fé.
Jamais me perdoarás,
porque não perdoas,
tratoras,
e eu me agarro, desesperado,
nos teus rastros
Eu me fiz de rogado
de esquecido
de desesperado
de adormecido
e tu vieste como uma ladra na noite
coroada com a Estrela de Belém
de ti milhões foram ceifados,
mas tu não me abandonaste!
Então, por que eu?
Por que me escolheste para ficar?
sei que não foi pelo meu canto
que é rouco
pela minha força
que é pouco
pelas minhas falas
que é louco
A tu, vida, só um paradigma,
só uma variável, importa:
a sorte
deste-me o rouco o pouco o louco
mas não a morte
e me obrigas,
como humano,
a observar e a cantar a humana gente
Por isso devo odiar a opressão
devo resgatar em mim
urgente
essa semente
essa fagulha íntima de fósforo e sal
devo lutar com olhos e dentes
com meu canto minha voz minhas mãos
com todo o meu corpo
com todo o meu ardor
pelo que há de mais humano em mim:
vê o que há de mais humano em nós
Tu me amas?
Como amar alguém que não se revolta?
Mas quem tem fome
tem medo
quem tem medo, não ama
sem Utopia não há Rebeldia
É fácil pregar a depravação humana
apontar por todos os lados a decadência
ralhar pela moral
identificar o vil
desde que se dê de ombros
se decante a não solução
se pregue foguetórios quânticos
da transmutação da consciência
em que tudo se faz com o poder da mente
do pensamento positivo
mas sem mãos, comunhão, mutirão
sem gente
É fácil pregar a cura da devassidão
solitária
é fácil pregar a salvação só no meu deus
e crucificar todo nazareno
que ande pelas ruas
É fácil ser salvo
quando só se vê nos outros a perdição
No meu outro só vejo a mim
só ele pode me salvar
E tu, vida? Me darás uma chance?
Me perdoarás?
E tu vida, serás complacente comigo?
Por favor, não.
Seja vida, seja dura, seja sempre.
Há duas coisas que prezas mais do que tudo,
Vida:
a sorte e a luta
se me doaste a primeira
te entrego a segunda
Não me perdoes, mas não me massacre
sou tão frágil
sou só humano
20,
Quero me despedir de ti
ao contrário do que parece
não foste assim tão mau
maus são os homens
Ofereceste soluções
ofereceste perspectiva
ofereceste resposta
ofereceste até mesmo revolta
e preferimos festas
Oh zeitgeist da minha era!
Nós, a pior geração,
gerada pela doutrina da não-Utopia
pela doutrina da não-dor
da não-luta
estamos formando a geração
da não-solução
Tudo individualizado
compartimentalizado
identitarizado
e, assim, mais alienado,
mais enfeitiçado de paetês
que o lucro lacrado pode comprar
mais precioso
que o contato humano
este não se perdeu por um vírus
mas por uma forma
uma técnica
que separa do humano
o conteúdo de humanidade
neste sonho louco
que tu, 20, quebraste
da máquina que produz sem mão humana
do conceito-forma
sem a solução do real no sujeito
nesta ideia louca de que lucro se reproduz
que derrubar
que queimar
é mais produtivo que viver
Fazem-se cálculos de banqueiros:
de pé esta árvore vale mil;
derrubada, cem,
salvem-se as árvores!
Mas quem salvará meu lucro?
Cem no meu bolso vale mais
que mil no bolso de milhões.
Quem salva a árvore,
salva meu lucro?
Só quem sabe o lucro planeja
o mundo.
Esta é a sua teleologia.
O deus-lucro é onipotente e venceu
a ti, 20,
mesmo a ti que inventaste
o tornado bomba
tu que trouxeste no teu início
a praga dos gafanhotos
e em teu final a conjunção
dos dois grandes deuses
nos céus que se cruzam
Nenhum Nazareno teu se salvou,
fomos iníquos!
A culpa foi tua?
Fomos imorais!
A culpa foi tua?
Fomos mesquinhos!
A culpa foi tua?
Fomos fracos!
A culpa foi tua?
Quem ferveu as águas,
escureceu o céu,
arrancou o verde,
destruiu habitats,
espalhou mentiras,
elegeu vermes?
Foste tu?
Revelas-te na cara dura do humano
o que é esta humanidade.
E,
por um momento,
breve que seja,
foste Épico!
E nós te transmitimos em virais.
Nós é que te traímos, 20.
Eras apenas o nosso espelho.
O concreto não derreteu
porque nós, de tão líquidos,
nos negamos de nos refazer.
Esta é a nossa vitória.
Nós te vencemos, 20,
tu nos prometeste fazer o teu pior
para que fôssemos melhores
Te vencemos 20,
a humanidade está mais degradante
do que nunca,
mas, te resta,
nesta míngua de lucros,
o eterno juros de que nos fizeste
nos enxergar a nós mesmos.
Nós, 20, nós.
15/04 – 04/05 – 20/05 – 29/05 – 01/06 – 02/07 – 08/08 – 04/10 – 11/12 – 31/12/2020
Poema ainda em progresso. Publico hoje, depois de seis meses de escritas, de indas e vindas, pois vou escrevendo à medida do que vou sentindo e refletindo da realidade de 2020. Só prometo terminar quando o ano terminar. Vai este texto, pois, como a epopeia da consciência de um ano trágico (este será o subtítulo do poema).
ResponderExcluirPor fim, chegamos ao fim de 20, do ano e do texto. 8 meses e 16 dias. 10 incursões ao papel. Alguns meses mais furiosos e criativos. Meses inteiros sem trocá-lo. Senti que tinha finalizado no Canto X. Mas, algo me chamou, 12 meses, 12 cantos. Aquilo que começou com Vírus, terminou com Vida. Que começou como desespero, terminou com vitória. Que começou com depressão, terminou com um agradecimento ao ano.
ResponderExcluir20, você não fará falta, mas, tão pouco, será esquecido. Em teu épico, a humanidade fracassou ao te vencer. No final, só resta nós.