sábado, 19 de julho de 2014

FATOR EFEITO-CAUSA

Mistério? Não há mistério algum.

Tudo não passa de uma concatenação infindável de causa e efeito. Nós só precisamos desvendar os incessantes aparecimentos daquilo que os céticos chamam de acaso e os crentes de providência divina.

A consciência desse fenômeno não anula o conhecimento do padrão reconhecível e rastreável de eventos. Pelo contrário, permite-nos desvendar as curvas em que se bifurcam os caminhos incontáveis do Universo.

Vejamos: alguém, ao despertar pela manhã, vê o Sol erguendo-se em radiante majestade e sorri.

Ora, o fato do Sol raiar, e consequentemente se pôr, é uma constante física conhecida, reconhecida e calculada devido a uma fina sintonia entre as gravidades dos corpos celestes. Pode-se dizer, a esta altura, que este ajuste perfeito é sinal dintervenção demiúrgica, mas o fato é que podemos traçar, desde esta apoteose solar, até o momento do nascimento do Universo: a explosão, expansão, desaceleração, esfriamento e, por conseguinte, o surgimento da matéria, das estrelas, de nós.

Uma série perfeita de causa-efeito que remontando ao nada dá-nos origem. E dessa sintaxe precisa e austera de substantivos e verbos, coisas e ações, matéria e movimento chegamos exatamente àquela manhã daquele Sol específico.

O sorriso alegra o dia do marido que vai trabalhar melhor com a vida.

De coração mais aberto, o marido faz amor de forma mais apaixonada e prazerosa com sua amante.

Movida pelas sensações e gozares daquela tarde morna e brilhante de amortórrido e trabalho seco, a amante briga com o esposo, talvez numa busca inconsciente de provocar a separação. O esposo, contrariado bate na amante. Esta chama a polícia. Sirenes, cães latindo, movimentação irritante na rua.

A discussão, que entra madrugada adentro irrita ao vizinho que, sem poder dormir direito, pela manhã seguinte àquele Sol maravilhoso, destrata o carteiro que lhe atrasou as cartas em alguns dias.

Irritado, pela noite, o carteiro bate no filho que anda muito mal em matemática, “Menino burro, aleserado”!

Pela manhã, segundo dia depois daquele belíssimo Sol, na escola o filho humilha um colega de classe que só tirava notas boas em matemática. Toda a escola ri do aluno, que não consegue mais suportar tanta destruição de sua alma, de seu caráter, de sua moral.

Ao passar a madrugada remoendo todos os dias de humilhação sofrida, o aluno mata-se ao raiar do terceiro dia, num amanhecer ainda mais glorioso do que a aurora doevento gerador, tira a própria vida: tão sangrento, tão horroroso!

Notemos, senhores, que na minha descrição objetiva e direta dos acontecimentos, o acaso interpôs-se três vezes: a sensação, completamente aleatória, que o Sol trouxe para o primeiro actante de nossa cadeia de eventos; o carteiro – poderia ser qualquer pessoa na face da Terra em que o vizinho derramaria sua tensão de noite mal dormida, mas nenhum outro carteiro, pois só aquele carteiro faz aquela rota, e, por artimanhas do “destino” decidiu pôr em ordem as correspondências vencidas; o suicida que ora vemos aqui o corpo ensanguentado que, “por sorte”, foi vítima do ódio e da frustração do filho do carteiro, porque naquele dia, justamente naquele dia, era prova bimestral de matemática.

É muito óbvio que na minha simplificação do sistema eu tenha me atido apenasaos momentos chaves que culminaram no desastre, excluindo, mas não esquecendo, das muitas horas destes dias que serviram para ampliar a carga emocional de cada pequena ação, que para muitos não seriam nada, mas para as vítimas, sobretudo para esta criança que destruiu a sua vida e os sonhos das pessoas que a amam – talvez uma perda ainda maior para estas: carregar a sensação do luto, da perda, pelos restos de anos que as suas vidas, severamente, reservam-lhes –. Para estes que participaram do efeito-causa ao qual me refiro (porque, como detetives, nosso processo é análogo, porém invertido ao da natureza), muitos são os dias, muitas são as sensações, muitos são os pesares que se somam a esta última dor decisiva: o marido apaixonado, feliz e infiel; a amante que há muito deseja acabar com o casamento deteriorado; o vizinho cujo travesseiro cruel lembra-lhe das contas em atraso e dos desvios que tem que fazer para pagá-las; o carteiro que ganha mal e trabalha muito, mas que se envergonha de sua irresponsabilidade laboral, desejoso de um bom futuro para o filho, filho este que se ressente pelo tratamento dispensado pelo pai e sente inveja do garoto que há de se matar; o suicida...

Ah, o suicida...

O suicida, que de tão bom filho, na profundeza de seu lar, de seu quarto a portas fechadas, esconde dos pais as dores e mazelas de sua alma, pais tão incompetentes incapazes de olhar no fundo do olho do filho e ver a sua dor, dor esta não vista, não detectada, não relatada pela escola: lar de tantas humilhações apenas.

Suicida que, por providência divina, é filho da primeira personagem deste enredo macabro...

Como podemos ver, o único culpado desta trágica sucessão inverossímil de causas que se encaminham a um inexorável desfecho é o Sol.

Sol que eu vi e admirei naquela manhã, três dias atrás, do Inferno da minha vida.

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