sexta-feira, 25 de abril de 2014

AURORA E ARREBOL

Mesmo sem ter o que fazer, madrugou.

Sentou-se diante da janela e acendeu um cigarro, esperou pelo laranja.

Como o cabelo dela.

Com uma mecha azul.

Como o nascimento da manhã.

Aurorecer.

Como quando eram jovens, e a pele muito pálida e o batom muito ébano e a sombra muito negra e as unhas muito pretas e a sainha curtinha, malamal escondendo as pernas finas e esguias e magras, saia tão escura quanto à regata que como o cinto – grosso e grande e desnecessário, malamal equilibrando-se como um bambolê numa cintura inexistente de tão esbelta – estão todos cravejados de metais e brilhos prateados como um poema de Byron.

Os olhos cristais cor de âmbar.

Quando eram jovens.

Em algum lugar perderam-se.

Não foi o cabelo castanho comportado, ou o terninho burguês de profissão liberal, ou a falta do batom – só um brilhinho, só um brilhinho cheirando maçã –, ou as unhas vermelho dia-a-dia, ou a sombra azul sóbrio, ou a base compacta, ou a maletinha puxada a carrinho – maldito congresso, maldito! – à espera nas portas dos consultórios a fim de apresentar a mais nova novidade da medicina farmacológica do mundo corporativo em promessa de novas curas e rentabilidades, ou o anel de bacharel.

Não foi a não maternidade.

Ela acordou, esfregou o cabelo numa coceira inconsciente, levantou-se num peido e dirigiu-se ao banheiro donde sairá pronta para transformar-se na eficiência laboral das vendas e das químicas da saúde engarrafadas.

Ele olhou, lembrou-se que esquecera o café, o cigarro não chupado desperdiçado por entre os seus dedos, perdeu o mais belo do espetáculo solar em sua apoteose diária: o Sol acostumara-se a imitá-la ao despertar, agora malamal reconhecem-se quem já foram espelhos.

Alvorecer tardio.

Não foi o adultério perdoado.

Alguma coisa aconteceu que os impediu de serem o que seriam.

Ele nunca entenderia, tão distantes e tão símeis entre si quanto Aurora e Arrebol.

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