Como transfiguração da ética ocidental, Superman torna-se sempre uma bússola moral, achincalhado por todos: "escoteiro" etc. Mas a verdade é que aqueles que veem o S, sabem que cá é o certo. Daí, talvez, a preferência de muitos pelo Batman e suas estórias cheias de matizes acinzentadas, de seu caráter quase de anti-herói andando na linha tênue da moralidade (embora o Batman realmente nunca deslize de seu próprio código ético, ele é completamente incorruptível, assim como o Superman), com suas grandes estórias tendendo sempre para o caracteres fascistas. O Superman, ao contrário, tem seus diálogos tendendo para a confirmação de um código de ética moralizante: ele é o pai (não o patriarca, neste caso) ensinando as crianças (ou adultos, ou vilões enquanto discutem com ele trocando sopapos): "não importa, o certo não se enverga". Poucas vezes, em suas estórias, Kal-El, é lançado a um jogo moral insolúvel, do tipo: salvo o menino e deixo o trem descarrilhar, salvo o trem, deixo o menino morrer. E normalmente quando isso acontece, a estória falha porque aqui não há escolha moral aceitável, não há como ser Superman (a não ser que ele salve os dois).
Mais do que o próprio S escancarado no peito, a figura de Clark Kent é aquela a quem Kal-El deseja salvar. Como representante típico do working classman (classe trabalhadora), que cresceu numa fazenda numa pequena cidade do interior, trabalhando com o pai e alimentando a nação, Kent é o caipirão, que chegou a universidade com bolsa paga pelo futebol, aquele desajustado na grande cidade, invisível, mas respeitoso e trabalhador, que mantém tudo funcionando para que as grandes para que aqueles de cima continuem ganhando milhões com seus belos ternos no alto dos grande edifícios das grandes metrópoles. Clark, o nerd de óculos de fundo de garrafa, cabelo desgrenhado, terno barato, desajustado entre os colegas da grande empresa, profissional liberal sempre em busca da verdade: o jornalista, professor, o jovem advogado, o jovem médico. Uma fala de Lex Luthor para Lois Lane - uma das personagens feministas mais libertárias e empoderadas da arte sequencial, desde o seu nascimento nos 40 - demonstra bem a visão do grande capitalista sobre quem é Clark Kent:
"Terá que me perdoar. Ainda estou tentando aceitar o casamento da impetuosa e corajosa repórter do Planeta Diário com... como foi que o Estrela Diária chamou o sr. Kent em sua recente coluna sobre a equipe do Planeta... 'Um parvo pacato, desastrado e caipira. Com mau gosto para ternos'. Sabe, minha oferta para salvá-la do sr. Kent ainda vale".
Neste sentido, Último filho funciona perfeitamente. Há a perfeita compreensão de que o Homem-de-Aço representa a moralidade do Ocidente: não se aprisionam e não se fazem testes em crianças; não se aprisionam inocentes; não se matam crianças; pais não machucam os filhos; crianças tomem todo o seu suco de laranja.
Ora, o que seria de um herói sem sua galeria de vilões? Se o Superman é a configuração da ética Ocidental, quem são os seus vilões? Eles são a realidade do Ocidente. A luta do Superman é o confronto quer ser, ou antes, acredita que é, contra aquilo que realmente é. Tomemos seus 4 maiores vilões: Lex Luthor, Gal. Zod (os dois nêmesis do enredo, este último sendo o principal), Brainiac (citado na estória) e Darkseid. Eles representam a realia Ocidental. Fiquemos com os dois primeiros por fidelidade à narrativa.
Luthor é o que o Capital e a Democracia acreditam que são: empreendedores, inteligentes, avançados, capazes, líderes. Diz Lex ao Superman: "Se não ficasse sempre no meu caminho, Superman, eu já teria feito muito mais pela humanidade. Teria ajudado aqueles que não andam a andar de novo. Teria curado o câncer. Teria salvado o mundo do poço imundo da sua lânguida existência". Diz o Capital para a ética. Ninguém duvida que o Capital é capaz de curar o câncer - frase que Luther vira e mexe diz ser capaz -, mas é muito mais lucrativo remediar os sintomas. Presidente Luthor (da LexCorp e dos EUA) é a face verdadeira do Ocidente: rica, empreendedora, sagaz, e com uma desculpa para não salvar o mundo.
Zod é o conto do que aconteceria com Superman se ele não tivesse sido criado pelos Kent. Ele é a resposta para a pergunta: o que acontece com quem tem poderes ilimitado? Corrompe-se ilimitadamente. A não ser que você seja a imagem pura da ética. Por isso Superman não titubeia, não pode duvidar, não pode ter achismos morais, ele é um deus, deuses são tiranos ou justos, mas são confiáveis. Se Kal-El usasse seus poderes para nos governar, para controlar os seres humanos porque somos inferiores a ele e ele poderia conduzir-nos melhor: ao invés de deixar políticos discutindo na ONU, chutar o pau da barraca e dizer: "Agora farão como eu mandar".
Quando um vilão diz que a "humanidade" (leia ética) do Superman é sua maior fraqueza, ele está completamente enganado (Batman sabe que esta é a maior qualidade de Clark Kent). Esta qualidade o define e por isso vence no final (Superman é um conto moralista, no final de tudo). Zod, no entanto é o general que manda armas para Bin Laden nos anos 1980 e depois reclama do terrorismo nos anos 2000; é o general que derruba os "ditadores" do oriente médio e não entende quando vê surgir o Estado Islâmico; é o general que ataca um país afirmando que este tem armas de destruição em massa, destrói, ocupa, arrasa, mata, perde jovens soldados e depois diz: "desculpe, estávamos engandos". General Zod é a força sem ética, também conhecida como O Mal.
Terminamos a estória como Chris, porque escolhemos ser ele, não Lor-Zod, gritando: "Para o alto e avante".
JOHNS, Geoff; DONNER, Richard; KUBERT, Adam. Superman: o último filho. Trad. Alexandre Callari; Mário Luiz Couto Barroso. São Paulo: Eaglemoss, 2015.
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