domingo, 27 de março de 2022

EPITÁFIO A UM LATIFUNDIÁRIO

– Ei, menino!

Teu pai foi à guerra?


– Foi, amontado!


– Em que lombo? 


– Dos homens do eito.


(Este é um poemitante, isto é, escrito concomitantemente como comentário para minha dissertação de mestrado (Descaminhos gerais: a representação do jagunço em Bernado Élis, 2011) analisando o romance O Tronco (1956), de Bernardo Élis.)

SONETO

Este é meu corpo que boia no rio.
Da vergonha que teve o meu marido
E de tudo o que em nossa cama viu.
E o olho foi do meu filho tão ferido
De ver sua mãe por vinte, por trinta
Homens tanto pecada por bandido.
E para não dizer que eu venha e minta:
Minha filha só sete anos se tinha
– É de tudo o que eu mais dentro em mim sinta –
Ela ali deflorada na cozinha,
E eu cheia-enchida desta areia-rio
→ Serviço final ← tal se enche galinha.
Este é meu corpo que boia já frio
Da dor de ser mulher num mundo vil.

(Este é um sonetomitante, isto é, escrito concomitantemente como comentário para minha dissertação de mestrado (Descaminhos gerais: a representação do jagunço em Bernado Élis, 2011) analisando o romance O Tronco (1956), de Bernardo Élis.)

O FIM DA ESCRAVIDÃO

A escravidão acabou para quem?

Para o Senhor 
            que ficou livre da senzala 
                                    do capitão do mato 
                                 e do tráfico negreiro?

Para o Estado 
            que não precisa mais fazer
Para a sociedade civil 
            que não precisa mais saber
Para a imprensa 
            que não precisa mais dizer
Ou para o povo 
            que ainda precisa viver?

A escravidão acabou para quem?

Para a multidão de corpos mortos 
            espalhados por nosso chão?
Para a multidão de mulheres violadas 
                       e de crianças orfanizadas 
                                     sem perdão?
Para as quebras de Xangô diárias 
     e de gente sem teto da multidão 
                                     sem futuro 
                                  e sem pão?

A escravidão acabou para quem?

Para meus olhos e para minha boca
acaba de novo 
       e de novo
       e de novo 
                          todos os dias
quando se fecham!