.
Antes de qualquer
coisa, quero fazer o mea culpa pela
demora desta segunda parte que vai. Dezembro é um mês cheiíssimo para a minha
profissão (professor): são provas bimestrais, provas finais, reuniões pedagógicas
antes e depois destas últimas; alunos chorando em súplicas, pais chorando em
súplicas, alunos ameaçando, pais ameaçando... mas esse texto não é sobre as
questões educacionais públicas brasileiras.
.
Tampouco ater-me-ei
simplesmente à devastação futebolística da final do mundial de clubes – partida
tão importante para os blaugrana que
os próprios jogadores do time decidiram não ganhar o “bicho” do título, como
não ganham por outros títulos “sem importância”, como as Recopas e Supercopas
que vencem –. Para tal intuito indico diretamente o texto do Zonal Marking, o melhor que li sobre o
jogo.
.
Minha abordagem
procurará ser outra: tentar compreender que revoluções nas práticas e nas
táticas o “messecre” culé implicará
para o futebol mundial, e sobretudo brasileiro; tomando também como perspectiva
a vitória anterior sobre o Real Madrid de Mourinho.
.
A primeira parte será
encontrada aqui.
.
2. Dupla-Tripla-Quádrupla Função
.
A questão fundamental
da escola holandesa de futebol total que o Barcelona prega e pratica até hoje –
que Josep Guardiola aprendeu diretamente de Cruyff, que chegara na Cataluña
junto com Rinus Michels no fim dos anos 70 para implantar o estilo que fizera
sucesso na Europa no início dessa mesma década no Ájax e na seleção laranja –,
é a inversão de posições verticalmente: o lateral vira ponta e o ponta vira
lateral, ou o centro-avante vira meia e o meia vira centro-avante, por exemplo.
É isto que se convém chamar de “carrossel holandês”.
.
Essa troca de posições
só é possível se todos os jogadores nela envolvidos souberem o que fazer na
nova posição em que se encontram. Isso obriga que os jogadores tenham, no
mínimo dupla-função, isto é, sejam atacantes e meias, ao mesmo tempo, ou
laterais e meias ao mesmo tempo, zagueiro e volantes, zagueiros e laterais,
laterais e volantes, etc. etc. etc.
.
2.1 Cesc
Fábregas chega às mãos de Guardiola
.
Francesc Fábregas saiu
das canteras do Barça e foi direto para às mãos de Arsene Wenger, no Arsenal.
Lá começou como um segundo volante tipo Box-to-box
no 4-4-2/4-5-1 de Wenger, com Bergkamp fazendo a função de 9,5, como se diz na
Itália e na França. Isto é, um trequartista
adaptado à função de second striker –
é só lembrar de Roberto Baggio, Alessandro Del Piero e tantos outros –.
.
Depois da saída do
holandês, Fábregas foi adaptado à ponta-de-lança. Nas mãos de Arsene, o jovem
espanhol desempenhara já estas funções. Chegando, enfim, de volta ao Barcelona,
Cesc foi logo posto na “função Messi”, ou falso nove.
Isso era necessário porque a principal necessidade da contratação do 4 foi
aumentar a qualidade do “banco”. Jogando com pressão alta sobre a bola o tempo
inteiro, o treinador tem que rodar a equipe, sobretudo as duas últimas linhas –
meias e atacantes –.
.
Com Messi em campo,
Fábregas jogou de ponta-de-lança no losango do 3-4-3 de Guardiola – desdobrado
em 3-1-3-3 –, com Xavi à sua direita e Iniesta ou Thiago Alcântara à sua
esquerda. Sem David Villa, normalmente Iniesta joga de ponta-esquerda, mas com
o 8 machucado, Guardiola arrumou mais uma quarta função para Cesc: também a ponta-extrema
– a utilização do mesmo na ponta-direita contra o Santos vou considerar como
mesma função, mas se o leitor preferir, pode considerá-la uma quinta –.
.
Contra o Real Madrid,
num inusitado 4-4-2, Fábregas foi o winger-esquerdo, invertendo com Iniesta, o
meia-central; contra o Santos, numa espécie de 3-1-4-2 – ou como eu prefiro
ver, um 3-1-5-1 – o 4 foi um meia-central que invertia com winger-direito Dani
Alves.
.
Percebe-se então uma
certa coerência de Guardiola. Sua escolha por contratar jogadores inteligentes,
com histórico de múltiplas funções em times anteriores, reflete diretamente o
pensamento culé de formar na base
futebolistas totais, jogadores capazes de inverter posições e manter o
carrossel rodando.
.
2.2 Sérgio
Busquets e o esquema 3,5 – 3,5 – 2,5
.
Messi é gênio (poucos
contestarão?). Xavi, Iniesta, Fábregas são craques entre os melhores do mundo
hoje. Mesmo assim, com qualidades individuais tão gritantes à sua frente, o
elemento tático que vêm chamando mais atenção nos últimos tempos é Sérgio
Busquets.
.
Busquets é
reconhecidamente o metrônomo do time, marcando a perfeição do seu tempo, é a
base da troca de passes do time. Ora, se estamos diante dum “carrossel”, ele só
gira – tal qualquer roda ou móvel, como bem já observara Aristóteles – a partir
de um eixo fixo. Este eixo é Busquets. Entre todas as receitas que se colocam
de “como parar o Barcelona”, todas começam com: “parem Busquets”.
.
Daí observar de perto
as funções deste “volante”. Na temporada 10-11, diante de tantos times com
apenas um atacante, o 4-3-3 barcelonista se transformava num ancestral WW(2-3-2-3), esquema tático com o qual a Itália foi bicampeã do mundo (1934-38).
Diante de um ataque de dois atacantes fixos Guardiola mandava o 16 fazer o que
eu gosto de chamar de “jeitinho brasileiro”: o nosso jeito de transformar o
4-3-1-2 em 3-4-1-2. Os laterais viram alas e o primeiro volante vira terceiro
zagueiro – o “sobra” –.
.
Porém não posso comparar Busquets aos volantes
médios brasileiros. Pode parecer exagero, mas a comparação mais clara seria com
Kaiser Franz
Beckenbauer. O único homem a comparecer na seleção ideal de
três copas FIFA seguidas, começou como volante do 4-2-4 germânico e acabou como
quarto zagueiro do 4-3-3 do time campeão do mundo em 1974. Na verdade, sua
função ficou conhecida como líbero.
Com a posse de bola, Beckenbauer tinha total liberdade de avançar ao meio de
campo e iniciar as jogadas, controlar a posse de bola, estabelecer a linha de
passes.
.
Já no Barcelona, com a
volta de Abdal à equipe depois de curar-se de uma doença gravíssima, os catalães
puderam formar seu 3-4-3 mais devidamente, já que o francês faz a base para dar
total liberdade para Daniel Alves. Parecia desnecessário, então, que Busquets
precisasse voltar a descer para a zaga.
.
Parecia. Contrariando
todos os prognósticos, Mourinho botou o Real Madrid num 4-2-3-1 para enfrentar
o Barcelona, quando todos esperavam um 4-3-3. Com isso, numa só tacada, o
treinador português tirava o tempo de Busquets com a bola e matava a defesa
azul-grená que não tinha sobra. Como Guardiola responderia a isso? Eu,
assistindo ao jogo, logo reclamei: “tem que recuar Dani Alves de volta à defesa”!
Mas Pep mantém Dani adiantado e recua Busquets.
Sem a bola, Busquets era zagueiro (compondo a sobra defensiva), com ela podia
adiantar-se, jogando no meio-campo, reiniciando a linha de passe.
.
Com a bola o time, por
causa da dupla função de Busquets, configurava-se num 3-4-3, sem ela num 4-3-3.
Poder-se-ia dizer, então, que o Barça joga com uma linha de 3,5 atrás e com 3,5
no meio, dependendo apenas donde jogaria Sérgio.
.
E como Messi é na
verdade um falso nove – só é centro-avante quando o time está sem a bola, e com
ela torna-se praticamente um enganche
–, não é bem um 4-3-3, e sim um 4-3,5-2,5!!! Se bem que, contra o Santos, o
ponta-direita (Fábregas) descia e invertia com o meia-direita (Alves), o
ponta-esquerda (Thiago) descia e invertia com o meia-esquerda (Iniesta), Messi
invertia com Xavi, e nessas alturas já se esquecia quem era quem neste mundo
bicolor.
.
Se a “função Busquets”
virar tendência, como o falso nove, não haveria lugar no mundo com jogadores
que melhor se adaptem às características desse “falso cinco” – ou líbero – do que o Brasil, tão repleto de
cabeças-de-área (e de bagre), com volantes que sabem virar o “sobra” como ninguém
(e daí só faltaria alguém para ensiná-los a dar passes e comandar a posse de
bola de todo o time para poderem ser chamados de líberos).
.
3.
Guardiola:
entre a retranca fascinante e invencionices revolucionárias
.
Pep Guardiola é um professor
pardal. Este é o ponto mais importante em se observar taticamente neste
Barcelona: suas invenções táticas. O elenco é praticamente o mesmo da época de Frank Rijkaard,
que montou uma equipe incrível: bicampeã espanhola, campeã da UEFA Champions League – doravante UCL –,
com a estrela do time ganhando seguidamente o título de melhor do mundo,
aplausos por todo o planeta.
.
Mas logo no primeiro
ano no comando da sua equipe, Guardiola ganhou tudo, baseado na sua covardia ativa
e na retranca linda e fascinante que montou.
.
Sem homens fortes ou
grandes defensores para o meio, Guardiola montou a sua defesa com pressão alta
sobre a bola, e depois na sua posse absoluta. Todos correm para retomar a bola.
Com ela, iniciam trocas de passes incessantes, o chamado tik-taka. Novidade? Nenhuma. Pressão alta sobre a bola e a posse da
mesma baseada na troca de passes é o fundamento do futebol do Arsenal de Wenger
– que inclusive cunhou o termo que melhor caracteriza essa possa de bola de
mais de 60%: “posse estéril”, isto é, tem-se a bola só por tê-la, sem nenhuma
outra intenção de criar jogadas ou marcar gols –.
.
A posse estéril,
portanto, não é uma atitude ofensiva, pelo contrário. É uma forma PRÓ-ATIVA de
se defender. O que Arsene e, principalmente, Guardiola se propunham não é recuar
e montar barricadas em frente às suas áreas, mas ficar com a bola o máximo de
tempo possível, seguindo uma teoria bem simples: se a bola está com você então
o seu adversário não está com ela, e, portanto, não pode atacá-lo. É simples
assim. Mas só é simples na teoria, na prática nada mais complicado, nem mais
complexo.
.
Hoje, com apenas três
anos da “era-Guardiola”, todos procuram emular estas duas características
defensivas do Barça. Uns com melhores (sobretudo aqueles que entendem que a
posse estéril é uma característica defensiva), outros com piores resultados.
Alguns já até desistiram e tentam uma via alternativa – e só de imaginar uma
alternativa para uma opção que nem existia há cinco anos atrás é de assustar –.
.
Mas não foram nem
Guardiola nem Wenger que inventaram isso. Pressão alta sobre a bola e o
controle da sua posse eram o fundamento do Dream
Team do Barcelona com Cruyff de técnico e Pep como jogador, e também do
grande Milan de Arrigo Sacchi – o último time bicampeão da UCL –.
.
O que estes quatro
times – e consequentemente os quatro técnicos – têm em comum? Todos se baseiam
nos ideais do Ájax e da seleção holandesa da primeira metade da década de 70.
.
É da formatação destas
equipes holandesas que também vem a segunda invencionice revolucionária de
Guardiola: o falso nove. A “função Messi” virou febre, mas nem todos os
treinadores conseguiram um jogador capaz de se encaixar nessa função. Guardiola
“inventou” essa função para La Pulga a fim de
surpreender o grande Sir Alex
Fergusson, na final da UCL de 2009, que entrou com Ronaldo de centro-avante,
montando-se praticamente num 4-6-0, seu esquema, na época, para “jogos
grandes”, muito comum na Inglaterra, enquanto Guardiola botou Messi de centro-avante,
recuando para armar, desmontando, assim, todo o desenho defensivo do Manchester
United.
.
Novamente Pep
remontava ao Ájax, à Holanda e ao Barcelona que tinham Cruyff de centro-avante.
O 14 fazia justamente a função de falso nove, sem a bola, jogava no alto do
campo, com ela poderia vir até a linha de volantes para receber e articular o
time.
.
Também podemos
remontar a décadas antes. A Hungria e o Honved de Puskas, Czibor e Kocsis.
Hidegkuti era o falso nove. Puskas e Kocsis, os dois meias do WM (3-2-2-3) húngaro,
viravam atacantes; os pontas Czibor e Toth recuavam e viravam meias: inversão
vertical, com já dissera, é a base do carrossel holandês – que foi pioneiro,
realmente, na pressão sobre a bola e na compactação total do time no menor espaço
possível –. O falso nove, por sua vez, remonta a Sindelar do Wunderteam – seleção da Áustria de 1934
–. Inversões de posições que remonta ao Dínamo de Moscow da década de 1940.
.
A grande modernidade
de Pep Guardiola tem sido de adaptar as grandes revoluções táticas DA EUROPA ao
mundo do futebol moderno, cuja preparação física é primordial. E a preparação
física do Barcelona é incrível: por ter sido o “primeiro” a propor este tipo de
jogo, ele saiu na frente da preparação física adaptada a este fim, e com peças
de reposição à altura. Todos os times que tentam se impor contra o Barcelona no
seu mesmo jogo, até conseguem se manter no mesmo nível por 30 minutos, um tempo
completo, mas depois cansam e acabam por ceder terreno e posse de bola aos blaugrana.
.
Por isso também não se
pode comparar o futebol barcelonista com o futebol brasileiro “clássico”.
Sempre houve a troca de passes no Brasil, mas a escola sulamericana é de
investida, do drible, do um-dois. Nossa posse sempre foi objetiva, procuramos
espaços para a infiltração, não para matar o tempo do jogo. Tampouco pode-se
sonhar em estabelecer um novo Barcelona na seleção argentina só porque eles têm
Messi. O toco-e-me-voy platino é
futebol sulamericano, toco e vou, toco e vou: quero receber na frente para
concluir. O tik-taka é o oposto
disso: a bola vai e volta, vai e volta, vai e volta.
.
O Barcelona é a
apoteose da Escola Danúbia. Escola
que, apesar do nome, começou na Escócia, no Queens Park – não o Rangers que hoje joga a Premier League –, mas frutificou com
maior força na Hungria, na Áustria e na Rússia – países pós-Danúbio –. A
ligação dos culé com essa escola
remonta a ANTES da chegada de Cruyff, da época em que parte do time do Honved e
da seleção húngara aportou por lá, como Kocsis – a outra parte, como Puskas,
foi para o Real Madrid, mas a maioria permaneceu no país –. Ainda podemos ver
ecos dessa escola também na Holanda, na França – em pequena parte, mas
influenciou fortemente nomes como Arsene Wenger – e na Alemanha – que absorveu
a Áustria, o seu time, os seus craques, e a sua maneira de jogar, somando-a a
sua eficiência já conhecida, quando Hitler anexou este país ao terceiro Reich –.
.
4. Conclusão
.
Um, dois jogos. Tantas
revoluções táticas. Não me admirará no início do ano que vem, que tanto
Guardiola, quanto Messi recebam os prêmios de melhores do mundo. A dúvida fica
de quando este time parará. O Milan de Arrigo Sacchi, o Dream Team de Cruyff, duraram o quê, três, quatro anos?
.
A dominação do Ájax e
da Bayern na década de 70 durou também uns quatro anos. O Botafogo de
Garrincha, o Flamengo de Zico, dominaram por uns quatro anos também. Santos de
Pelé dominou por em torno de uma década.
.
O Barcelona de
Guardiola e Messi dominará por quanto mais tempo o cenário mundial?
Nenhum comentário:
Postar um comentário